quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Um lugar

“Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se te interessas, posso mostrar-te.”
(poema de Rumi)
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Passou com o olhar inexpressivo, o gelo nas meninas dos olhos, o tremelique dos dedos dos pés pelo andar constipado, enfim obstruído pelo odor da caruma dos pinheiros que ali deveria ser uma raridade. Mas, afinal não era. Havia mesmo caruma espalhada no chão.
Umas árvores de fruto, também oliveiras, umas amendoeiras, medronhos, sim os medronhos estavam maduros, mas só um se podia comer, os outros estavam chupados dos pássaros. Nem aqui escapo a esse poderio das bicadas dos pássaros.
Colocou-me na mão um vermelho, bem vermelho, que me fez lembrar um dia lá na aldeia em que misturei amoras pretas com vermelhas, para saber como seria depois o suco. Obviamente, que agreste.
Simplesmente me disse: “nunca pensaste no que se pode dar a alguém mesmo tendo os bolsos vazios?"
Peguei num monte de caruma que fiz esvoaçar sobre o alcatrão, enquanto absorvia aquele odor dos pinheiros e saboreava o medronho agora espremido no céu-da-boca. 
Perdi um dos anéis. Foi a rebolar pelas encostas. Espreitei. Calei-me a pensar no valor do anel que iria perder-se por ali. Era de ouro. Fiquei unicamente com o que me oferecera quando um dia o retirou do seu próprio dedo.
De novo me disse: “Os teus amigos não se interessam em saber se ganhas ou perdes, se és vencedora ou vencida, mas sim em saber se és feliz, sem jogos (without playing) e o mundo assim deverá pular e avançar, digo eu.
“Come with me.I want to show you a place”. Vem, que te quero mostrar um lugar, o lugar mais quente e mais parecido com os lugares onde sempre se faz história. O lugar onde o coração fala quando sente e canta quando consentes ser alma e mais nada".

Dolores Marques

"Avó se não nos virmos antes, até dia 31 se Deus quiser"



“Avó então se não nos virmos antes, até dia 31 se Deus quiser”
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Antes de regressar a casa, Guilherme chamou-me ao quarto, porque me queria mostrar a sua obra de arte feita com peças de legos. Já tinha feito a árvore de natal, faltava só o Pai Natal. Estava quase pronto. O gui completou há pouco 8 anos. As suas habilidades para os desenhos estão agora mais aprimoradas, com colagens e materiais estranhos...(eu não os conheço). Também me ofereceu um desenho.O Afonso exibiu o seu carro quase acabado e o Tomás já tinha completado o dele há muito.
Era já noite e também a hora de regressar. Despedi-me com os beijos de sempre, as palavras quase iguais, mais coisa menos coisa. Abri a porta e o Guilherme que quase sempre me acompanha até ela, diz-me:
“Avó, então se não nos virmos antes, até dia 31 se Deus quiser”
Bloqueei. Mais um daqueles momentos que quando não se esperam nos deixam com ar de espanto nos olhos e tremores na voz , porque sempre existe ali algo que nos toca.
Coisas nossas de todos…. da alma…das almas. 
Como fiquei com uma espécie de nó na garganta decidi escrever, porque quase sempre ajuda. No próximo encontro, a ver se consigo falar com o Gui, sobre Deus. Quero saber o que ele sabe que eu não sei, já que se encontra mais perto DELE do que eu.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Sabes...



Sabes, era o tempo dos frutos e do mel
Era o tempo das cerejas e dos pássaros a bicarem nas minhas mãos
Era o tempo de subir às cerejeiras e me vestir daquele vermelho vivo, tão vivo como o tempo dos madrigais...sabes?
Sabes como é sentir-se princesa com brincos de cereja ocasionais?
Bailavam os pingentes vermelhos pendurados nas orelhas a desafiarem o escuro dos olhos
Sabes…era assim um tempo de folhos e rendas, e tranças com laços no cabelo
Eu, como sabes sorria para os montes porque era primavera
Era o tempo das urzes e das águas a correrem nas levadas
Era também o tempo,do suco meio agreste das amoras a escoar-se pelos meus dedos
Este era apesar de tudo um tempo sem açucenas medievais
Era o tempo das pútegas e dos doces intemporais
Sabes que era também o tempo dos ninhos nos beirais
Do cantar do cuco nos pinhais
E dos corvos nos matagais ?
Estes traziam a morte nas asas e os choros nos seus arraigados ais
Sabes, era também o tempo do verde dos lameiros
Das águas a correr pelos ribeiros 
E também por cima de mim 
Ai de mim a sorrir para o sino da capela, quando por sorte lhe puxava a argola agrilhoada 
Depois escapulia-me e deitava-me na erva macia a olhar os dias azuis, e os verdes, e os rosas e depois os amarelos e os lilases
Os vermelhos eram os que mais gostava. Partilhava-os com uns ténis novos de marca...diziam serem de marca...não sei
Eram todos os dias dos meus olhos
Eram os que me permitiam ser céu e serra, rio e vento, chuva e maresia, sol e lua, noite e dia, e tudo o que um só corpo astral vivenciou para mim
Era eu, naquele nevoeiro miudinho que descia da serra, sem correntes nem visões futuristas de qualquer apogeu
Era um dia sem céu
Era o tempo dos olhos negros…vivos tão vivos como as olhos escondidos nas folhas das oliveiras
Mas sabes também quem eu era
Tal como sei quem tu eras
Vida cantada nas eras das pedras de xisto
Vida desvairada nos penedos onde o vento escreveu num só segundo os nomes todos que já eram seus
Tu e eu, ou Eu e tu, elevados ao tempo de um céu maior nos nossos olhos
E agora, de novo as amoras nos silvados para pintarem os meus lábios
E as cerejas, brincos esbeltos de rubi a brilharem debaixo dos meus cabelos
E foi sempre assim apesar do vermelho dos ténis que calçaram os meus pés

Dolores Marques

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O Ultimo Baú

Gostava de poder ir sem medo, para algum lugar onde os homens se alimentassem de tulipas brancas, e trouxessem nas mãos as marcas do futuro.
Quem se lembra?
Gostava que ainda houvesse tempo para calarem ecos e descobrirem sorrisos por entre olhares cabisbaixos. 
Gostava de ser Tu. 
Gostava que fosses eu.
Que fosse uma só noite de insónias e tudo cairia nos meus olhos, como cai agora a noite de todos os dias.
Temo os degredos, os olhares por cima dos ombros, os segredos nos bastidores, as palavras surdas, a mudez, a altivez a trair momentos, a castigarem os nomes…e por sua vez a água benta que ainda lhes corre no corpo
Temo as lágrimas forçadas, os olhos tortos, o jeito de enguiço.
Enjeito os lugares onde te expões aos perigos do teu Ser. 
O não seres Tu, deixa de o ser com a mesma facilidade com que o És.
Nunca o será quando te deitares na noite e deixares que ela te leve ao fundo...ao fundo de um nada que ainda te faz remexer no vazio 
O último baú onde guardaste toda uma vida...

DM

Tempos


Foi nas sombras
ainda adormecidas
das páginas antigas
de um mesmo livro
que lemos…

Foi nos tempos todos
que nos inspiraram 
as histórias 
de outros homens
e das novas mulheres…

Foi nos espaços
herméticos 
de um passado
rasgado com emoção
que te vi esperança
luz, cor e Amor
a colorir o futuro 
das meninas
dos meus olhos

Dolores Marques 
23 Dez/2015

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

As palavras que sempre te direi (do capítulo Dimensões)

Livres no pensamento serão todos os que puderem assimilar a verdade da única sílaba tónica, que sem poder acentuar palavras, se desprende de um voo lento para cair nas correntes fortes de um rio. 
Na verdade, serão únicas as várias tonificações das palavras que se encolhem e se preparam para novos voos mais profundos. Lá, estaremos nós para as acolher nas suas verdades, nos seus propósitos de serem fontes inesgotáveis, enquanto mantivermos esta força única de um ponto.

Viver além da dor é sentir no corpo esta força viva, pronta para desflorar num pensamento pontificado. Levar-nos-á para um local desprotegido, se não mantivermos a ligação à chama que sempre se mantém acesa, para dela recebermos todos os ingredientes que necessitamos e deixarmos a vida passar, sem dela fazermos grande aparato.

Ter presente na nossa mente, que há nós que se desatam, e outros que se assemelham a formas continuadas e enroladas à nossa cintura é sabermos igualar os gestos de um corpo.
Quero muito ser livre. Quero muito encontrar-te nessa tua realidade. Quero que tudo o que venha desse ponto minúsculo, se mantenha como rastilho na minha mente. Preciso dessa leveza solta nas minhas ideias, para que te possa sentir a viajar por todas as artérias que transportam as correntes sanguíneas do meu corpo. Sem isso não poderei dizer-te nada, porque não te sinto certeza na minha verdade, nem verdade na minha realidade.

Vejo-te eu, sem saber de mim. Sinto-me tu sem saber de ti e não aguento esta dor perfilada no meu pensamento quando te penso solto por aí. Gostava de poder deixar-te ir, mas não estou ainda preparada para essa verdade que já existe desde que nasci. Este medo! Esta loucura presente! Esta lucidez inconsequente que me transforma, anulando-me por completo, são o cárcere onde habito, se não souber encontrar o ponto fulcral onde tive início.

Preciso saber-me na cor deste espaço fechado. Encontrar-me com esta solidão e questioná-la sobre as nossas mais exactas verdades, num momento expandido nos nossos corpos, compostos por fragrâncias, fiéis depositárias de novos conhecimentos da vida, por detrás de vidas. Sei que há um deles que só eu poderei conhecer, se dele me aproximar no preciso momento em que souber deixá-lo ir.
Serei sempre aquela que te disse um dia de um amor presente, de uma dor constante, de uma vida que sem ser vida num instante, é aquela que escolhi para te dizer de mim. Viverás nesse encolher de ombros, ou nessa expansão dos gestos, sempre que quiseres lançar para a atmosfera, um sentimento que nada te diz. Eu, feliz por assim ser, voo junto e fico sentada à tua espera, porque sei que um dia chegarás lá, nesse ponto minúsculo, mas gigante na leveza de um olhar feliz. 
Esse, não terá cor, nem te trará o sol nem a lua, tão pouco as estrelas, mas tão só, a vida que escolhi para mim, quando te disser:
AMOR – a única palavra que me faz viver em liberdade, em busca da harmonia de um corpo que se abrirá sempre, e fará de todas as estações, a Primavera dos Tempos. A única palavra que transformará as minhas ideias, num sentimento capaz de te dizer que te AMO, quando conseguir fazer-te a saudação de dentro da minha solidão e te disser que a chama que me alimenta, vem de ti, porque nela fiz nascer esta paixão que sempre me acompanha, tonificando todos os pontos que já começam a formar novos traços, na composição aquosa do meu corpo.

MEDO – a única palavra que me faz querer, sem saber o quê, por não poder ter o que não me pertence. Sentir que este sentimento que me alimenta, é composto por partículas desagregadas de um todo que nos uniu, mas que, também elas, por se terem perdido, criam este efeito paralisador, alternado com o pensamento. Não te quero perdido por aí, porque para me sentir bem, terei que saber de ti. Fica então neste patamar onde guardo todos os meus segredos, mas não sejas segredo para mim, porque não quero perder-me quando pensar em te procurar.

ÔNIX 2010
in " A voz do Silêncio" (a editar)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Coração da Terra - FOME



Que triste e quão maquiavélico pode ser o ser humano, quando sente a corrosão do seu próprio movimento afundado no seu corpo. Esse elemento castigador que se lhe entranha, enquanto engordam os olhos, quando por via dos ventos tardios se fabricaram hóstias fora do tempo. Vingam-se do tempo das colheitas, do tempo dos lilases, do tempo das urzes, do tempo do sol, do tempo da água, do tempo do fogo, do seu tempo, em concomitância com a ordem com que chegam à terra os elementos.

Quão habilitado em pensamentos dominantes está o ser humano, que não vê, não sente, sequer se sente ordenado por um qualquer telecomando que já existe para o ser pensante. Em estado de pura amnésia, quase estátua sem medo, edificada agora no seio de todos os segredos ocultos onde vive. É este o paradigma do novo modelo, onde a inteligência, já não se define: nem a própria como sempre se nos afigurou, a dominante, nem aquela que aflora ainda à tona deste imenso oceano, a emocional, que de vez em quando, furacão, decide irromper por todas as frentes da mente, e do seu ser pensante em busca de abrigo, de algum conforto para beber da luz infinita do seu único Ser.
Disfuncionais, as formas, que se diluem por entre a neblina. Somos o universo tântrico, em torno de um eixo imaginário, onde o limite que nos separa é a linha onde o sexo respira e transpira, com tal transparência, que nem a mente consente nesse exequível ponto equidistante.
Vilipendiamos o nosso semelhante, como quem se expõe a ele, tal como o forcado enfrenta na arena o ser animal, ocasional.
Asseguramo-nos de um mundo virado ao contrário, porque nos reviramos, quando com olhos tortos nos fisgamos a todos, num rodopio esquizofrénico, com algas marinhas enroladas aos nossos corpos. Trazem a força de um dos elementos, que no mar se exilou por quanta loucura dali se apossar.
Exercitámos os músculos do corpo, para nos presentearmos esqueléticos na forma, mas exacerbados nos movimentos que damos ao fogo que trazemos. Não sabemos ainda, sobre o universo alquímico dos corpos ser a união sagrada da força de todos os outros elementos.
Absorvemos da atmosfera um sem número de iguarias, prontas para nos encherem os poros abertos da pele, quando por força de um elemento terreno, nos masturbamos em orgias funcionais e até as intelectuais.Esquecemos de nos masturbar de forma eloquente, na verticalidade, com que se apresenta a humildade, e nesse universo, o AMOR.
A fome de se “Ser” dos tempos modernos é uma fome estranha, mas sem se saber onde comprar a sua própria passagem para o outro lado, a margem dos enganos, mas, sedenta de humanismo.
Ele ali está, pronto para ser consumido, pois sabe muito bem de um fragmento, que cresce a olhos vistos, por todos os cantos da terra. Mas, como já vem lá dos tempos em que o homem descobriu o fogo, sem saber que já existia há muito dentro dele, agora quer transformar o seu próprio fogo num quinto elemento terreno.
Mais um ledo engano, o seu, porque por muito dissecar o ar com o seu bafo quente, ainda não teve tempo para ver, que mesmo esse, já constitui um todo no seu corpo.
A metamorfose, que ele não vê, porque o tempo dos tempos mortos é o paradigma que ele já construiu.

Dolores Marques 
(ÔNIX 07/12/15)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Armadilham-se os Sentimentos

Coração da terra
Armadilham-se os Sentimentos

Talvez o novo movimento do tempo, não nos seja favorável, por quanto a espera que começa a ser imperiosa por dias melhores para todos nós. A indiferença com que nos olhamos, quando nos tocamos e depois nos sentimos, é cada vez mais, um fundo a gozar de plena euforia por tudo o que ali afundamos, quando com olhos tortos, nos abafamos todos naquele espaço denominado já de fundo alegórico e hostil.

O novo estado de coisas, pelas quais os governos dos países se regem, são em demasia para se saber qual delas, é a verdade ou a inverdade que colocam no prato da balança. Esta simbologia presente em todos os nossos gestos, por ser a justa medida de todos os valores possíveis na humanidade, é o nosso garante para a unificação dos povos. Porém nunca foi tão permissiva a força do mal, como agora, a pesar mais para  um dos pratos da balança, que nem mesmo a criação de novos movimentos, faz com que a diferença se assemelhe por fim, a um sinal verdadeiro de diferenciação.

De tal forma se armadilham os sentimentos, que chega a ser assustador todo este envolvimento catalisador a cair em desordens transcendentes. Todos colocamos uma bomba armadilhada junto ao peito. O lugar onde se querem as forças todas juntas para a unificação do Ser. Não são, os que, carregando no botão, explodindo-se em fragmentos ensanguentados, fazem a guerra. Somos todos a própria guerra, quando por força do medo da morte, nos vamos golpeando a cada dia que passa. Agora já não são as costas o seu peso morto, mas os olhos. Os olhos que lançam constelações desorientadas por sobre os nossos corpos, que os faz arrastarem-se cabisbaixos. 

Irremediavelmente descoroçoados pela miséria que assola em cada esquina, vão-se desintegrando e sujeitando ao agrupamento intencional que faz frente a todos. São aqueles, que por sua livre e espontânea vontade, deixam de ser naturais na sua genuinidade, para se julgarem uma espécie de divindade a querer furar o céu antes do tempo.

A existência onde tudo tem lugar, passa a ser um atrofiamento das ideias, onde não se sabe o que mais dói: se o ser-se em verdade, se o não se Ser, quando por via do medo, se movimentam os olhos em busca de outras verdades, que já começam a fazer fila na feira das vaidades, onde o preço é cada vez mais alto. 

Agora já não há lugares, já não há poder, já não desordem, já não há exércitos, nem tão pouco fronteiras do silêncio. Agora tudo são gritos de revolta. Até os gritos silenciados por uma blasfémia que desce dos olhos dos que, imaculados, diferentes, endeusados, se humedecem sem lágrimas poentes.

Agora é o tempo dos tempos mortos, para os que sabem desse peso em cima dos ombros. Felizes dos que o sabem, porque os outros ainda andam com o peso das armadilhas bem junto ao ponto onde tudo se inicia. O lugar onde em tempos lhes nasceu um sentimento.


Dolores Marques

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

"SIMBIOSES MONTEMURANAS", o novo projeto de livro de Dolores Marques

(...)pareceu-lhe alguém a chamar por si. Estanca de imediato os passos! Porém, sem se atrever a olhar para trás, ouvia agora com maior nitidez uma voz de criança, que lhe dizia:
- Nem tudo "são rosas, meu Senhor". Perderam-se pelo caminho, quando se decidiu colher o dourado dos campos, meu Senhor.
Falava com a doçura dos olhos, enquanto ele, num ranger de dentes que se sobrepunha entre a língua agora amaldiçoada, seguia em frente. Apertou bem o casaco, que o frio, a ninguém poupa a forte aragem provocada pela geada, que de noite chegou. Levou a mão ao bolso e retirou de lá um rebuçado, que enfiou dentro da boca.
Antes de se adentrar pela neblina, ainda olhou para trás, mas nada viu. Mais uma vez, se certificou da presença do Divino, a criar ecos nas pedras da calçada (...)

"SIMBIOSES MONTEMURANAS", brevemente em livro

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Sobre o livro: "Prometo Voltar" de Jorge Ribas




“Era sem dúvida um cidadão do mundo, mas Portugal corria-lhe nas veias.”

O ponto de passagem para o outro lado do mundo estava ali gravado naquelas paredes, onde sua mãe se entregara ao destino, há tantos anos atrás. João,  após ter aprendido a ler e a fazer contas numa ardósia xistosa, sentiu-se nu, na penumbra dos dias, quando da serra chegavam montanhas de nevoeiro a roçar-lhe a pele morena da face. 

Também por entre “cordas de água” se desprendia em movimentos disformes, quando por via dos ventos de cima, ter que lhe virar as costas, não fosse o diabo tecê-las e ver-se obrigado a virar  as costas ao Deus: 
seu já conhecido e amigo nas horas tristes, em que subia as encostas da serra e ali ficava pegureiro sem medo, mas com horizontes fechados nos olhos.

Crescera o Homem Serrano, que no Montemuro se completava, quando sentado nos penedos, se organizava em prol de um futuro promissor. Porém, nunca por nunca, avassalador do amor que nutria pelas suas gentes, pela sua terra, onde as rosas também nascem, se criam e amam todo este movimento celestial que sempre desce do alto, lá bem perto do céu.

Deste facto, tinha consciência plena. Enquanto as giestas se entregavam ao vento em tremeliques dançantes, ele via por entre aquele odor “giestal”, a força que o  levaria para lá, mas sem nunca faltar ao prometido que a sua consciência já determinara. 

Também já o consentira, a sublime existência de dois seres que se completavam entre olhares e toques de mãos, quando no moinho se entregavam à doce e imaculada água que descia da serra, e fazia girar a mó que daria o pão nosso de cada dia. Às vezes até o pão que o diabo amassou!!! 
Mas, Rosita trazia sempre aquele doce e intemporal sorriso nos lábios, aliado ao seu perfume natural, que tudo assim se completava neste cenário montemurano.

Cumpriram-se todas as promessas. Desfizeram-se todos os enganos, se os houve,  neste trajetco, quando no rio se fez homem em busca da aventura existencial, para se cumprir o sonho de ir mais além. Ali, naquelas águas mornas, as correntes amorteciam-lhe a queda e levavam-no a outras paragens. 
O Rio Paiva, o seu rio, um forte simbolismo caracterizado pelos movimentos migratórios que o fizeram conhecer a maior corrente que nos corre a todos nas veias e que se chama, Amor.  
O seu rio onde sentiu o primeiro toque feminino, que por consequência o fez conhecer a paixão, o prazer de se sentir também, amado e desejado.

Simbolicamente falando, estamos perante duas forças do feminino montemurano.  A corrente migratória de um rio, enamorado com a energia migratória serrana. E ali estava mais uma vez, a única força revitalizadora – o AMOR. Esta força, existente entre dois seres, nascidos e criados numa encenação perfeita, tendo como palco uma aldeia da serra do Montemuro.
  
Por fim, é chegado o momento de abrir os olhos e deixar sair os horizontes ali trancados. Novas correntes se apoderaram desta força da montanha, quando se lhe afiguram novos ventos, os quais, embora distantes, tinham ainda muito para contar. São estes ventos fortes do Norte, capazes de mover montanhas, mesmo as montanhas da saudade. 

Nem mesmo a distância apaga as imagens dos elementos que caracterizam a serra do Montemuro:
Gente brava, aventureira, dura como o granito, que os lançou em desatino por conta das novas correntes que corriam nos seus corpos. Correntes migratórias que os levaram em busca do sonho ali nascido e criado. 
Pelas suas raízes fundas, nunca a aridez de outras culturas as fez secar, porque os desertos infindáveis são agora correntes movediças, nos corpos que aguardam pelas novas chuvas de um outono em plena euforia.

Do outro lado do mundo, a força presente neste livro continua viva e intransigente. 
A promessa ganha cada vez mais força, e a cada dificuldade, João vê-se confrontado com a exigência que a terra obriga. A sua terra, as suas gentes, e, principalmente aquela energia feminina, que no papel de sua mãe está bem patente neste vai-e-vem entre uma montanha e outra.  

Poderemos até firmar-nos na existência de um  fio de ligação entre a serra do  Montemuro e o Monte Cervino em Matterthon, que sempre existiu: 
dias, em que de um lado surgia o nevoeiro a trazer aquela chuva miudinha,  a formar  cordões de água, e do outro, os farrapos de neve esvoaçantes, formando um todo unificado entre os dois lugares. 

Por quanto me inteirar destes amiúdes gestos, que se soltam por entre as páginas deste “Prometo Voltar” de Jorge Ribas,  também gostava de me prometer ser fiel à leitura presente. Não me alongar por montes e vales numa procura incessante de simbologias de terra, em confronto com os outros elementos. 
Ouvem-se rumores de um  tempo, que ainda corre veloz por entre os trilhos da serra, cujos personagens deste livro calcaram e vincaram, como se os tempos fossem de primaveras sucessivas.

Neste tempo, em que o amor se consumava entre montanhas saudosas de afectos partilhados à mesma mesa, na Serra do Montemuro, os aromas primaveris dançavam entre portas, quando por via da velhice, aliada ao isolamento, seus pais tiveram que parar. 
Sua Mãe soprava ainda as brasas de uma fogueira semi-acesa, enquanto o Pai se intrometia, ante a tristeza que se misturava por entre as ervas, ainda escorregadias de um inverno longo.

Mas, a força da natureza é algo de grandioso. 
“Um bom filho a casa torna”, enquanto as duas forças unidas gerarem novos ventos de esperança, e com eles, novos acontecimentos  a fazerem crescer melodias nos pinhais, agora mais fartos.
A força da mãe presente neste livro, a MÃE que o gerou, e o criou…e o devolveu à terra, de modo que esta fizesse o seu trabalho de fundo, que era levar o filho a correr mundo. A energia da mãe, sempre em constante afirmação, quando por causa de se ver forçado a emigrar, se aventurou por caminhos novos e ali se completou. 
Por fim o Amor. De novo esta energia que se abre em danças celestiais e permite a cada  Ser….ser um Ser.

Assim se constroem vidas, e se tentam calar os ecos de um passado de raízes fundas e lágrimas correntes migratórias. Porém, nunca por nunca se calam as vozes, tais ruídos de fundo que dão  vida a esses mesmos ecos. O rio ainda espera por ele e a serra igualmente o recebe, tal como o Amor que deixou para trás, mas aguardando que se cumprisse a promessa de voltar.

Lavoisier mostrou como:“Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, mas as reações químicas, provocadas pelas alterações climatéricas no Montemuro, deixam implícito todo este movimento, a quem viaja para se fazer cumprir toda uma vida. Por isso, nada se compromete, sem deixar como palavra de honra, a única que se conhece, ajustada ao meio onde sempre se viveu e nunca se perdeu.

Tenho para mim que na ânsia de voltar, o livro ainda não se completou. “Prometo Voltar”, deste meu conterrâneo, Jorge Ribas, é uma viagem no tempo e no espaço, tendo, como ponto de partida e de chegada, os elementos que se surpreendem uns aos outros, por conta da força dominante, que o sentimento natural por todas as coisas, ainda suporta. 

O fio de ligação entre as duas montanhas ainda não se quebrou!Dai, este imenso caminho, ainda à espera que se prometa ficar.


Dolores Marques
Publicado no Notícias de Castro Daire

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Ainda Povo

Ainda Povo

Quero chegar lá! Lá, onde o coração me queira levar
sim lá, onde a minha alma se encontra e me dirá 
se devo, ou não, continuar a viagem, se me fará voltar
quando tudo o que escrever for lido e não traído por lá

Não tenho o fácil, nem o óbvio, tão pouco o acessível 
possuo somente a linguagem da alma que é em mim
e me fez andar por labirintos, quando um eco credível
nas ruas e ruelas, me saudou com aromas de carmesim

Quero somente saber da sorte que trouxe a fome
entrar por aí, saber quem foi que a baptizou 
para chegar aqui simplesmente com esse nome

Quero somente entregar-lhe agora um olhar novo
traze-la para bem perto de um…ainda sonho 
a erguer-se nas memórias de um…ainda povo

Dolores Marques

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Simplesmente uma varanda virada para o rio


Coração da Terra
Simplesmente uma varanda virada para o rio.

Não sei se existe ainda a palavra, com a qual se possa dissertar sobre algo que tenha a ver com a alma que colocamos em todas as coisas.
Como se vem sabendo, com o tempo tudo passa e muitas vezes até se esquece. Não sei se é assim com tudo o que ainda se firma entre os dedos, por termos nas mãos o destino que muitas vezes nos acontece. É que se firmam muitas vezes,  as mãos em punho sobre a mesa, onde se escreveram odes a todas as coisas.

Sei que por muito pouco, o meu olhar não atingiu essa presença envolta num véu de onde se soltavam gemidos traídos por um céu replecto de sombras. Lembro-me tantas vezes porque nunca o meu olhar nos traiu, quando nos encontrávamos à beira mar e falávamos de um rio que ainda corre por montes e vales. Das suas correntes sabia-o bem pois nelas me deitava a olhar o céu e a contar quantos ajuizados haveriam de existir, para que chegando lá, me faltassem todas as palavras com as quais construímos muros e outras coisas. Seguimos por novos caminhos, porque nada nos faz ficar presos ao passado, tão-pouco juntos.

Se por causa de um qualquer culto, em que de joelhos no chão me dispunha a contar a tua história, me deixasse ficar a remexer a terra com apenas um dedo da minha mão, esse seria um dia admirável até por quem nas alturas me guiava os olhos em busca de um novo sermão. Riscaria na terra ainda húmida todas as letras com as quais escrevemos poemas in-duo, e os deixamos ficar a contar estrelas no céu daquela varanda virada para o rio.

Que bom que é, não ter passado nem presente e nem futuro. Que bom que é, Ser-se só, e sem nenhuma ordem de tempo. Se por lá houvesse algo que talvez se pudesse trazer para o presente, e quiçá levar todos os acordes desse som para um futuro próximo, onde os poemas se construíssem e não se substituíssem por qualquer ordem imposta por poetas, que no presente fazem histórias estruturadas com ecos impostos pelo pensamento abstracto.

Sei de um tempo, em que acreditar nas palavras com as quais se escreviam poemas, era um monocórdico volume, adulterado por um movimento aberto para quem quisesse ser seu amante, mesmo que o som fosse ultrajado por qualquer poema mastigado e depois cuspido. Lembra-me este facto um tal desaguisado entre um livro com poetas e não poetas, que prometiam ser fiéis à sua alma, mas que por qualquer razão dominante, se juntavam e se decapitavam uns e outros na mesma arena.

Sei também que na falta de um elemento, os outros, castigados pelos ventos, trocavam os nomes às coisas. Por isso, em prol da omnipresença de um todo, permitia que a nova mudança do tempo criasse em mim um saber de outros tempos, quando menina soltava ecos pelos campos, e madrugava os olhos no verde dos lameiros com enchentes de águas cristalinas nos cabelos

Não sei porque este tempo do agora me permite ir lá atrás, arrastar o pensamento a uma maldição antiga, que foi quando o tempo se engoliu a si próprio, sobretudo quando também por causa do futuro se mantiveram as mesas de honra voltadas ao contrário.
Sei de um tempo nosso. Um só tempo que me permitiu Ser poeta e escrever sobre causas infinitas num olhar sem passado, nem presente nem futuro. Simplesmente uma varanda virada para o rio.

Dolores Marques

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Causas

Às vezes ando de pedra em pedra a contar os passos, e até que a soma dos dias seja o todo nas minhas mãos, há dias que também me custa caminhar sozinha.
Pensando nisto tudo, sobrevivi à causa que me empurra contra os muros erguidos por causa nenhuma.

domingo, 27 de setembro de 2015

Folclore







Do tempo das tulipas brancas


Não vos posso trazer flores, se no jardim que é de todos, as flores murcharam, dando lugar a arranjos plastificados, matéria orgânica desarrumada. 
Enquanto as flores amarelas se mantiverem por aqui, nada fará calar os ecos que as tulipas brancas deixaram, nas nossas mãos. Eram ecos vindos de um além próximo do jardim que ainda é de todos. Lembram?
Sei que já não se lembram das tulipas nem das rosas, e sequer dos arbustos que se alimentavam à entrada do jardim.
Sei que há verdades escondidas nos bolsos, e que os olhos, os olhos se fecharam por haver falta da única vontade que o branco das tulipas trazia para nós.
Agora no cimo, lá no alto da serra, correm brisas sedentas de outros tempos em que as águas eram correntes puras e cristalinas. 
Correm ventos em desvarios pelos olhares todos que ainda vêem para lá, sem precisarem de sair do lado de cá. 
Lá, já não há condições, nem sequer suposições de qualquer ordem, porque todo o ar se movimenta e desce já pelas encostas. Todos juntos somos um todo e o todo aguarda por ecos passados do tempo das tulipas brancas.

Dolores Marques

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Tal como vós POVO



Há quem escreva
para o povo
do povo
há ainda quem escreva
sobre o povo
mas eu sou simplesmente
um verso
no meio do povo

Por isso
sigo esta viagem
da alma
por caminho incerto
nem sempre
cuidando desta minha fé
enraizada no mesmo chão
onde andei descalça
enterrei sementes
na mesma terra
onde nasci tal como vós
POVO

Brinquei e contei
pedras no rio
o mesmo onde as correntes
são vadias
mas não vazias

Há quem espere
em agonias
pelo povo
porque só ele
é o sustento
de tantas fomes
no meio dos montes


Por isso
eu não escrevo
para o povo
nem do povo
e sequer
sobre o povo
SOU POVO

Que importa isso agora
se tudo o que escrevesse
não seria nada de novo
que rimasse com povo...

Nem sequer serviria para nada
porque o nada
habita nas palavras
e estas por sua vez
já foram
tal uma cesta de vime
VAZIA



Que importa escrever
para o povo
se povo já eu sou
na inverosímil
mas devida
omnipresença

Por isso
escrevo para os outros
que do povo
bebem histórias
e à semelhança do pão
se ajoelham no chão
para a sagração
da sua própria convicção

Não me peçam palavras novas
que do povo nascem sempre
as mais carismáticas
quando por força maior
se quedam junto dos Santos
e estes as inspiram
para a nova ordem das coisas

Escrevo sim
palavras do coração
a linguagem da mãe
e que por ligação
ao pai
fecundam os versos
os poemas e as prosas

Por isso 
sou assim
perante a vossa 
indiferença
a alma que segue
pelos campos
que no rio se alimenta 
quando da chegada
de novas correntes
que são os meus olhos
o meu corpo
e até o meu pensamento
enquanto os outros
tentam decifrar códigos
por entre as palavras 
que escrevo

Dolores Marques

Metamorfose Montemurana

Coração da Terra
Metamorfose Montemurana


Coração da Terra
Metamorfose Montemurana

Satisfaz-me saber de um saber antigo, daqueles que todos os ventos trazem quando uivam na noite por serras e serranias, por entre penedos e fundos grotescos do ambiente serrano. Satisfaz-me saber das várias alterações climatéricas que nos trazem novos ventos e brisas, dos quais se soltam novas histórias com mais pés e cabeça, apesar das várias cabeças cortadas com a foice dos enganos.

Os ventos adversos nem sempre trazem acopladas partículas desintegradas do granito. Há dias cuja metamorfose proveniente da junção das duas forças rochosas, se dá de tal forma, que nem o xisto e sequer o granito sobrevivem, quando por força das circunstâncias, há lugar a uma nova força que gravita à roda da presumível nova rota dos ventos.

Não me satisfaz saber, que tudo é como o tempo e com o tempo se apaga. Há melodias que são eternas nestes caminhos íngremes, por entre granitos e xistos. O tempo, tal como o vento carrega fardos nunca antes pensados e sequer profetizados pelos profetas que cantavam ao Deus único, e também o único morador do cume da serra. Inteirava-se ele, sobretudo, de todas as maldades e atrocidades dos humanos, quando por força de alguns mediatismos, se interrogavam, se as enxadas, os forcados e até as foices, seriam a única via para se apresentarem como justos, todos os gestos carimbados nas notas de rodapé de um livro virado ao contrário.

Impressionante é também a forma como se vira a mesa, e depois de virada se lhe cortam as pernas para que na próxima refeição, ela seja, não só uma mesa mas um monte de histórias sem a cabeça e sem os pés. Impressionante como se manipulam as refeições colocadas na mesa, a mesma onde trucidaram todas as pernas dos frangos acabados de nascer. Impressionante o mediatismo catastrófico de uma refeição com pés e cabeça à mesma mesa.

Impressionante a forma de muitos virarem os frangos e os colocarem de fato e gravata, e da mesma forma, sentados à mesma mesa.
Aqui na terra dos justos, a justiça nem sempre anda de mãos dadas com os versículos escritos à pressa por mãos humanas. Impressionante... como, querendo, contabilizamos diariamente os pensamentos e os comportamentos "nazis" que nos cercam. Porém com uma nuance ....agora ainda mais enfeitados com as penas do "anjo dos infernos", que entretanto cresceu.

Aqui na terra que é de todos, nem todos se movimentam em prol do bem comum.
Aqui no planeta azul nem tudo é azul, porque as paletas de cores foram adulteradas com o sangue dos ainda vivos, amedrontados com o poder que vem muitas vezes como um calafrio na espinha.
Os rostos enxangue neste vai-e-vem, onde o granito se desintegrou serra abaixo, e se descuidou num decoro irracional, foram engolidos de seguida sem sequer saberem quem os engoliu. As bocas são muitas e o granito começa a escassear neste ermo em tons ébrios mas distantes de um azul celeste, que também é engolido quando o lusco-fusco chega, e o azul indigo lhe dá conta de um saber que vem de um horizonte acabado de chegar, mesmo ali junto à entrada maior do templo.

Impressionante, como querendo, todos os olhos vêem além do óbvio. Porém, estão todos cegos. Impressiona, que nunca por nunca imaginei um lugar assim com rasgos frontais da memória, a quererem afundar as correntes amontoadas à volta dos olhos. Impressiona este humanismo todo com que se vestem os homens e se deixam nuas as mulheres, todavia, tudo é tão vago e quase um nada, que muitas das vezes o abismo é tudo. Depois, são os braços dos homens a esburacar um túnel que dá conta de mais um templo que na terra cresceu e se desenvolveu. Às vezes dou até comigo a falar com um outro eu que fui criando, enquanto os anjos não desciam dos céus e habitavam o templo.
Era assim um diálogo nocturno, como se a noite fosse o templo que Deus me deu.

Eu sou Dolores Marques, Coração da Terra

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Para sempre

Não sei se a melhor carta de amor será a única via possível para fomentar o encontro amoroso que já existe em nós. No entanto, meu amor, eu escrevo por nós e para nós. 
Sei que esse encontro se dá da forma mais habitual; o ritmo dos dias, a cobrança das noites, a fuga para lugares distantes, na espera do mediático olhar que te trouxe a mim. Esse, é um olhar manso, do qual recebo um pouco de tudo o que já medrou nos nossos corpos enlaçados. 
Vê como se transforma a vida na sua mais recente aquisição: Nós! 
Vê como se dilatam as noites, que enquanto acordados, vemos um mundo a arquitectar novas formas; umas obscuras, outras claras, outras dissidentes, outras resistentes e outras ainda,  a finarem-se em cada poro da nossa pele. 
Vê como se aglutinam os dias e as horas que passamos longe, quando as distâncias são um desejo a crescer, profanando os vultos nascidos no nosso olhar.

Sei de um tempo de cansaços e de esperas. Sei também, de naturais momentos em que nos cingimos e fomos um na espera do tempo que nos unisse e nos fizesse ser um só corpo, uma só alma, um só desejo a crescer nos nossos corpos ainda quentes. 

Mas as mãos meu amor, as mãos que são as tuas, são também as minhas; colocam no meu corpo sementeiras nobres, do tempo em que nada havia, a não ser a dádiva por todos os traços fidedignos ao destino.

Mas as mãos, meu amor, as mãos que são as tuas, são também as minhas;
a fomentar encontros, a igualar os gestos, a eternizar olhares, até que se acomodem nos bolsos e retirem deles, a irmandade prestes a nascer de novo, para que o amor se renove e se transforme para sempre em vida a crescer como um desejo profano. 

Eu estou aqui e sou o teu desejo, a tua fome, a devoção na tua mão. 

Esta, será a água benta dos nossos dias, a temperança das nossas noites, e tu meu amor, a renovação interna do meu querer Ser em ti.

Bem hajas por seres o Amor em Pessoa, a vida prestes a renascer no meu corpo.
De sempre e para Sempre, tua...

Dolores Marques

Cores do Outono



Caminhava e pensava num ror de coisas
assim andava sem parar e falava agora
alteando a voz. E que voz afinada
ela emprestava às brisas e a todas as coisas

Bailavam à volta dela, os tons pictóricos
de um Verão em franco desbotamento de cores
e ainda assim não se dava conta
dos raios solares que caiam na sua mão

Por isso continuava o rebolar das ancas
rua acima, rua abaixo. Inundavam-se
todos os becos
com enxurradas de prantos

Os soluços primaveris tal como o cair das folhas
não lhe causavam tremores
não lhe tomavam as pernas nem os braços
até as partes mais íntimas se apegavam
àquele bambolear constante
por entre as folhas secas enquanto lhe pesavam
os sobrolhos por cima dos olhos

Só o pensamento se mantinha intacto
na sua forma única de ser uma mulher
com o Verão ainda no corpo
e a Primavera nos olhos. Nas mãos
o Inverno a debruçar-se sorrateiro
e no olhar ainda a doce acalmia
das brisas outonais num espaço inédito
onde a fome se acomodara
desde a última estação

Dolores Marques

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Imaginava-te

Imaginava um lugar 
sim, um lugar 
onde pudesse brincar às escondidas

Mas não podia ser um lugar qualquer
tinha que ter um muro de pedra
e também um castelo
que não faltasse um rio
muitas árvores 
e também o chilrear 
dos pássaros nos ninhos
Imaginava-te ali
como sempre foi
quando sonhava e ali ficava
a contar pedrinhas de várias cores

Agora caiu o pano 
lá de cima
e ninguém me cobriu o corpo
não me embalou 
nem me contou uma história
para dormir

Podia pelo menos ser uma só
que não estivesse em algum livro
e sim na tua imaginação
como quando nos encontrávamos
também às escondidas
para brincarmos
e líamos em duo
o mesmo livro

Já ontem assim aconteceu
e hoje preparei-me 
para te imaginar
e tu não estavas como sempre
no mesmo lugar

Dolores Marques

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Claridade

Claridade por entre os fios que ligam o céu à terra, e ao mar, enquanto o zingar do mastro do navio se encolhe nas minhas mãos.

Para lá de um olhar


Loucura

Vivo em demasia
a loucura 
do mundo todo
que há mim

Talvez um sonho
ou uma verdade
que se quer
vontade minha
que desconheço

Essa ingrata 
que se quer 
inteira e livre 
só para mim
expõe-se assim
sem limites
desenquadrada
do espaço
que me aguarda
sempre

No cais

Porque todas as viagens começam e acabam nos portos....e nós esquecidos no cais
Aportadas ou deportados...somos nada mais do que corpos abandonados entre partidas e chegadas.

Rio abaixo

Na continuidade do tempo, quando um dia se adianta a outro dia, enquanto a noite é um buraco negro onde afundamos os nossos medos...
Mais um momento a saber dos movimentos das águas, das descidas e das subidas das marés enquanto a cana dançava, e o anzol trazia às suas mãos um habitante daquele lugar.

Coube-lhe a sorte por ser ainda um safio em tempo de crescimento e por isso, desta vez voltou ao seu próprio movimento migratório rio abaixo.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Verticalidades

Elegante na sua verticalidade, pelo que, se basta a si próprio quando navega por oceanos, e ali se acomoda sem se preocupar com os movimentos migratórios de outrora, já que os de agora são bem mais contraditórios, por quanto ilusórios os momentos em que sobem à proa, e ainda dominam parte da nossa história.

Detalhes de um rio

Detalhes de um rio...na zona mais in da Cidade. Porém, sendo objectivamente delinquente, o rio é uma súmula de predicados inconscientes, por quantas correntes passageiras, pelos nossos olhos.

Movimento das águas

Conversámos sobre o movimento das águas. No dia anterior, a calmaria do rio criara reflexos por entre uma luminosidade intensa, porém, hoje o vento permite um vai-e-vem constante que se nota na descida e na subida das águas. 
Fixou-se na minha objectiva e abriu o saco para me mostrar um peixe que tinha mordido o seu anzol. Eu,disse-lhe que o meu obectivo era simplesmente pescar momentos, e arrecadá-los no espaço e no tempo que tinha para alcançar o pontão e voltar a tempo de terminar aquele momento da minha hora do almoço. 
- Então não almoça - diz-me, lançando um olhar breve, sobre a máquina.
- Sim vou agora pensar nessa possibilidade.
- Eu dava-lhe este peixe, mas a menina não deve gostar de peixe cru.

Agradecida fiquei pela sua amabilidade, por me ter proporcionado saber das subidas e descidas de marés, dos reflexos intensos que nos proporcionam encontros à beira do rio, mas, sobretudo por me levar ao passado em que na minha meninice mergulhava nas águas de outro rio, lá nas terras altas do Montemuro,

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O centro


Quero o nada
Se esse nada
For somente
A inusitada presença
De um fogo quente
A tomar-me o centro 
De um tudo que te dou
E me tiro enquanto nada
Que me sou

Este calafrio na espinha
Este energético centro
Acoplado ao movimento
Que dás aos traços
Que se formam
Nas palmas das minhas mãos

Este calor suado
Na inerte madrugada
Na demanda do prazer
Jeito inato…nascente 
De um único ponto
Que me quer toda
Porque sim

Este degrau solto, acrescento 
À minha alma em chamas
Corpo que se esfuma
No centro da noite
Que me tome por inteiro
Nas sombras de Deus 
...Ocasionalmente

Dolores Marques Poemas 2011

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Miradouros


Transformações


Imaginação ou sonho
Ou só libertação da lua
Quando se deita no meu peito
E me diz de um foco
Invertido no meu corpo

É noite
E eu sou dia
É mar
E eu sou rio
É montanha
E eu sou céu
A cobrir-lhe as partes
Mais íntimas

Aquelas que se deitam
Sempre comigo
Quando fecho os olhos
E a sinto
Corpo no meu corpo
Alma na minha alma
Sangue no meu sangue
Vida na minha vida

Imagino-me assim:
E toco-me
E sinto-te
E m’enlaço
E desfaço estes nós
Que se manifestam
Ao acaso
Pelas mãos de um ocaso morto

Dolores Marques 

quinta-feira, 23 de julho de 2015

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Está aí alguém?


- Andam todos à minha procura? Mas eles não sabem que me fui embora? Eu avisei. Não avisei? Terei ficado algures parada no tempo e não sei? Preciso saber o que se passa com os meus passos. Descompassados andam eles de tanto caminhar e rodar em sentido contrário. Poderá ter sido do vento que caiu esta noite a arrasou tudo. Nem pegadas ficaram no chão. Preciso alertá-los, para a minha ausência…. que me fui. Vivo na mortandade adversa da minha pele. Mas como poderei estar nesta área, se não vejo aqui ninguém?

- Se te mantiveres num propósito maior e fizeres da fé a razão da tua existência, terás todas as respostas.

- Mas, podiam pelo menos aparecer. Aparições acontecem nesta vida.

- Pois, já entendi! Na outra vida não há aparições, mas sim revoluções internas, insinuações, pré-aparições, ou serão premonições?

- Alguém falou comigo? Está aí alguém? Mas, de quem é esta voz? Acho que preciso ir ao médico, sim ao médico. Fazer uns Raios X à cabeça, uns electro... ao coração, enfim fazer exames médicos. Radiações que me são favoráveis neste meio.

- Mas aqui não há disso.

- Estou pior, sim acho que piorei. Terei que me esconder. Não quero voltar àquele hospital
....(cont)

Epifania & Ainafipe, pseudónimo de Dolores Marques
("Ao Espelho", um livro em projecto de edição)