quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Templo


Talvez a difamação seja só um meio de profanar o templo onde guardo todas as lembranças de menina. Talvez seja só uma memória que ficou algures em outro tempo, quando ainda não sabia se tu virias ao meu encontro.  Recebo-te como quem recebe um credo, atendendo a que não sei como ficar,  neste patamar elevado ao surrealismo e idealizado por um olhar triste. Sempre te sinto ir, sem saber se voltas cedo ou tarde, neste dia em que me debruço na janela e vejo as águas paradas no Tejo. São elas que me levam quando descanso os olhos nesse leito sossegado. Lembro os dias em que ficava na noite à espera de ouvir um som, um qualquer som que me dissesse onde te poderia encontrar mas nada me dizia nada. Só um amontoado de vivências soltas, quando em outro rio me deitava e me deixava ficar a ouvir o estalar das pinhas nos pinheiros, até que o sol se fosse. Foi sempre assim este templo; portas abertas para o tudo ou o nada, paredes nuas onde pinto todos os sorrisos, vidraças furadas, estilhaçadas pelo meu olhar novo e dei-xando-me ficar, simplesmente à espera que o sono me levasse para algum lugar. 

Profana esta melodia, que de dia se confunde com os ruídos da tua rua, quando as palavras são só um meio para iniciar a fuga. Essa loucura escondida a paredes meias com o medo de serem encontradas, o desejo de serem profanadas, até à mais pequena nota onde se inventam outras melodias escondidas. Talvez as palavras se diluam. Talvez as crendices se apaguem, e provoquem o desfecho duma história, que faz do templo um lugar para se encontrar o verdadeiro acreditar nas palavras que merecem ser ouvidas, e não profanadas num canto qualquer da tua rua.


Dolores Marques 2010
Foto: DM (zona Oriental de Lisboa)