quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Um lugar

“Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se te interessas, posso mostrar-te.”
(poema de Rumi)
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Passou com o olhar inexpressivo, o gelo nas meninas dos olhos, o tremelique dos dedos dos pés pelo andar constipado, enfim obstruído pelo odor da caruma dos pinheiros que ali deveria ser uma raridade. Mas, afinal não era. Havia mesmo caruma espalhada no chão.
Umas árvores de fruto, também oliveiras, umas amendoeiras, medronhos, sim os medronhos estavam maduros, mas só um se podia comer, os outros estavam chupados dos pássaros. Nem aqui escapo a esse poderio das bicadas dos pássaros.
Colocou-me na mão um vermelho, bem vermelho, que me fez lembrar um dia lá na aldeia em que misturei amoras pretas com vermelhas, para saber como seria depois o suco. Obviamente, que agreste.
Simplesmente me disse: “nunca pensaste no que se pode dar a alguém mesmo tendo os bolsos vazios?"
Peguei num monte de caruma que fiz esvoaçar sobre o alcatrão, enquanto absorvia aquele odor dos pinheiros e saboreava o medronho agora espremido no céu-da-boca. 
Perdi um dos anéis. Foi a rebolar pelas encostas. Espreitei. Calei-me a pensar no valor do anel que iria perder-se por ali. Era de ouro. Fiquei unicamente com o que me oferecera quando um dia o retirou do seu próprio dedo.
De novo me disse: “Os teus amigos não se interessam em saber se ganhas ou perdes, se és vencedora ou vencida, mas sim em saber se és feliz, sem jogos (without playing) e o mundo assim deverá pular e avançar, digo eu.
“Come with me.I want to show you a place”. Vem, que te quero mostrar um lugar, o lugar mais quente e mais parecido com os lugares onde sempre se faz história. O lugar onde o coração fala quando sente e canta quando consentes ser alma e mais nada".

Dolores Marques

"Avó se não nos virmos antes, até dia 31 se Deus quiser"



“Avó então se não nos virmos antes, até dia 31 se Deus quiser”
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Antes de regressar a casa, Guilherme chamou-me ao quarto, porque me queria mostrar a sua obra de arte feita com peças de legos. Já tinha feito a árvore de natal, faltava só o Pai Natal. Estava quase pronto. O gui completou há pouco 8 anos. As suas habilidades para os desenhos estão agora mais aprimoradas, com colagens e materiais estranhos...(eu não os conheço). Também me ofereceu um desenho.O Afonso exibiu o seu carro quase acabado e o Tomás já tinha completado o dele há muito.
Era já noite e também a hora de regressar. Despedi-me com os beijos de sempre, as palavras quase iguais, mais coisa menos coisa. Abri a porta e o Guilherme que quase sempre me acompanha até ela, diz-me:
“Avó, então se não nos virmos antes, até dia 31 se Deus quiser”
Bloqueei. Mais um daqueles momentos que quando não se esperam nos deixam com ar de espanto nos olhos e tremores na voz , porque sempre existe ali algo que nos toca.
Coisas nossas de todos…. da alma…das almas. 
Como fiquei com uma espécie de nó na garganta decidi escrever, porque quase sempre ajuda. No próximo encontro, a ver se consigo falar com o Gui, sobre Deus. Quero saber o que ele sabe que eu não sei, já que se encontra mais perto DELE do que eu.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Sabes...



Sabes, era o tempo dos frutos e do mel
Era o tempo das cerejas e dos pássaros a bicarem nas minhas mãos
Era o tempo de subir às cerejeiras e me vestir daquele vermelho vivo, tão vivo como o tempo dos madrigais...sabes?
Sabes como é sentir-se princesa com brincos de cereja ocasionais?
Bailavam os pingentes vermelhos pendurados nas orelhas a desafiarem o escuro dos olhos
Sabes…era assim um tempo de folhos e rendas, e tranças com laços no cabelo
Eu, como sabes sorria para os montes porque era primavera
Era o tempo das urzes e das águas a correrem nas levadas
Era também o tempo,do suco meio agreste das amoras a escoar-se pelos meus dedos
Este era apesar de tudo um tempo sem açucenas medievais
Era o tempo das pútegas e dos doces intemporais
Sabes que era também o tempo dos ninhos nos beirais
Do cantar do cuco nos pinhais
E dos corvos nos matagais ?
Estes traziam a morte nas asas e os choros nos seus arraigados ais
Sabes, era também o tempo do verde dos lameiros
Das águas a correr pelos ribeiros 
E também por cima de mim 
Ai de mim a sorrir para o sino da capela, quando por sorte lhe puxava a argola agrilhoada 
Depois escapulia-me e deitava-me na erva macia a olhar os dias azuis, e os verdes, e os rosas e depois os amarelos e os lilases
Os vermelhos eram os que mais gostava. Partilhava-os com uns ténis novos de marca...diziam serem de marca...não sei
Eram todos os dias dos meus olhos
Eram os que me permitiam ser céu e serra, rio e vento, chuva e maresia, sol e lua, noite e dia, e tudo o que um só corpo astral vivenciou para mim
Era eu, naquele nevoeiro miudinho que descia da serra, sem correntes nem visões futuristas de qualquer apogeu
Era um dia sem céu
Era o tempo dos olhos negros…vivos tão vivos como as olhos escondidos nas folhas das oliveiras
Mas sabes também quem eu era
Tal como sei quem tu eras
Vida cantada nas eras das pedras de xisto
Vida desvairada nos penedos onde o vento escreveu num só segundo os nomes todos que já eram seus
Tu e eu, ou Eu e tu, elevados ao tempo de um céu maior nos nossos olhos
E agora, de novo as amoras nos silvados para pintarem os meus lábios
E as cerejas, brincos esbeltos de rubi a brilharem debaixo dos meus cabelos
E foi sempre assim apesar do vermelho dos ténis que calçaram os meus pés

Dolores Marques

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O Ultimo Baú

Gostava de poder ir sem medo, para algum lugar onde os homens se alimentassem de tulipas brancas, e trouxessem nas mãos as marcas do futuro.
Quem se lembra?
Gostava que ainda houvesse tempo para calarem ecos e descobrirem sorrisos por entre olhares cabisbaixos. 
Gostava de ser Tu. 
Gostava que fosses eu.
Que fosse uma só noite de insónias e tudo cairia nos meus olhos, como cai agora a noite de todos os dias.
Temo os degredos, os olhares por cima dos ombros, os segredos nos bastidores, as palavras surdas, a mudez, a altivez a trair momentos, a castigarem os nomes…e por sua vez a água benta que ainda lhes corre no corpo
Temo as lágrimas forçadas, os olhos tortos, o jeito de enguiço.
Enjeito os lugares onde te expões aos perigos do teu Ser. 
O não seres Tu, deixa de o ser com a mesma facilidade com que o És.
Nunca o será quando te deitares na noite e deixares que ela te leve ao fundo...ao fundo de um nada que ainda te faz remexer no vazio 
O último baú onde guardaste toda uma vida...

DM

Tempos


Foi nas sombras
ainda adormecidas
das páginas antigas
de um mesmo livro
que lemos…

Foi nos tempos todos
que nos inspiraram 
as histórias 
de outros homens
e das novas mulheres…

Foi nos espaços
herméticos 
de um passado
rasgado com emoção
que te vi esperança
luz, cor e Amor
a colorir o futuro 
das meninas
dos meus olhos

Dolores Marques 
23 Dez/2015

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

As palavras que sempre te direi (do capítulo Dimensões)

Livres no pensamento serão todos os que puderem assimilar a verdade da única sílaba tónica, que sem poder acentuar palavras, se desprende de um voo lento para cair nas correntes fortes de um rio. 
Na verdade, serão únicas as várias tonificações das palavras que se encolhem e se preparam para novos voos mais profundos. Lá, estaremos nós para as acolher nas suas verdades, nos seus propósitos de serem fontes inesgotáveis, enquanto mantivermos esta força única de um ponto.

Viver além da dor é sentir no corpo esta força viva, pronta para desflorar num pensamento pontificado. Levar-nos-á para um local desprotegido, se não mantivermos a ligação à chama que sempre se mantém acesa, para dela recebermos todos os ingredientes que necessitamos e deixarmos a vida passar, sem dela fazermos grande aparato.

Ter presente na nossa mente, que há nós que se desatam, e outros que se assemelham a formas continuadas e enroladas à nossa cintura é sabermos igualar os gestos de um corpo.
Quero muito ser livre. Quero muito encontrar-te nessa tua realidade. Quero que tudo o que venha desse ponto minúsculo, se mantenha como rastilho na minha mente. Preciso dessa leveza solta nas minhas ideias, para que te possa sentir a viajar por todas as artérias que transportam as correntes sanguíneas do meu corpo. Sem isso não poderei dizer-te nada, porque não te sinto certeza na minha verdade, nem verdade na minha realidade.

Vejo-te eu, sem saber de mim. Sinto-me tu sem saber de ti e não aguento esta dor perfilada no meu pensamento quando te penso solto por aí. Gostava de poder deixar-te ir, mas não estou ainda preparada para essa verdade que já existe desde que nasci. Este medo! Esta loucura presente! Esta lucidez inconsequente que me transforma, anulando-me por completo, são o cárcere onde habito, se não souber encontrar o ponto fulcral onde tive início.

Preciso saber-me na cor deste espaço fechado. Encontrar-me com esta solidão e questioná-la sobre as nossas mais exactas verdades, num momento expandido nos nossos corpos, compostos por fragrâncias, fiéis depositárias de novos conhecimentos da vida, por detrás de vidas. Sei que há um deles que só eu poderei conhecer, se dele me aproximar no preciso momento em que souber deixá-lo ir.
Serei sempre aquela que te disse um dia de um amor presente, de uma dor constante, de uma vida que sem ser vida num instante, é aquela que escolhi para te dizer de mim. Viverás nesse encolher de ombros, ou nessa expansão dos gestos, sempre que quiseres lançar para a atmosfera, um sentimento que nada te diz. Eu, feliz por assim ser, voo junto e fico sentada à tua espera, porque sei que um dia chegarás lá, nesse ponto minúsculo, mas gigante na leveza de um olhar feliz. 
Esse, não terá cor, nem te trará o sol nem a lua, tão pouco as estrelas, mas tão só, a vida que escolhi para mim, quando te disser:
AMOR – a única palavra que me faz viver em liberdade, em busca da harmonia de um corpo que se abrirá sempre, e fará de todas as estações, a Primavera dos Tempos. A única palavra que transformará as minhas ideias, num sentimento capaz de te dizer que te AMO, quando conseguir fazer-te a saudação de dentro da minha solidão e te disser que a chama que me alimenta, vem de ti, porque nela fiz nascer esta paixão que sempre me acompanha, tonificando todos os pontos que já começam a formar novos traços, na composição aquosa do meu corpo.

MEDO – a única palavra que me faz querer, sem saber o quê, por não poder ter o que não me pertence. Sentir que este sentimento que me alimenta, é composto por partículas desagregadas de um todo que nos uniu, mas que, também elas, por se terem perdido, criam este efeito paralisador, alternado com o pensamento. Não te quero perdido por aí, porque para me sentir bem, terei que saber de ti. Fica então neste patamar onde guardo todos os meus segredos, mas não sejas segredo para mim, porque não quero perder-me quando pensar em te procurar.

ÔNIX 2010
in " A voz do Silêncio" (a editar)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Coração da Terra - FOME



Que triste e quão maquiavélico pode ser o ser humano, quando sente a corrosão do seu próprio movimento afundado no seu corpo. Esse elemento castigador que se lhe entranha, enquanto engordam os olhos, quando por via dos ventos tardios se fabricaram hóstias fora do tempo. Vingam-se do tempo das colheitas, do tempo dos lilases, do tempo das urzes, do tempo do sol, do tempo da água, do tempo do fogo, do seu tempo, em concomitância com a ordem com que chegam à terra os elementos.

Quão habilitado em pensamentos dominantes está o ser humano, que não vê, não sente, sequer se sente ordenado por um qualquer telecomando que já existe para o ser pensante. Em estado de pura amnésia, quase estátua sem medo, edificada agora no seio de todos os segredos ocultos onde vive. É este o paradigma do novo modelo, onde a inteligência, já não se define: nem a própria como sempre se nos afigurou, a dominante, nem aquela que aflora ainda à tona deste imenso oceano, a emocional, que de vez em quando, furacão, decide irromper por todas as frentes da mente, e do seu ser pensante em busca de abrigo, de algum conforto para beber da luz infinita do seu único Ser.
Disfuncionais, as formas, que se diluem por entre a neblina. Somos o universo tântrico, em torno de um eixo imaginário, onde o limite que nos separa é a linha onde o sexo respira e transpira, com tal transparência, que nem a mente consente nesse exequível ponto equidistante.
Vilipendiamos o nosso semelhante, como quem se expõe a ele, tal como o forcado enfrenta na arena o ser animal, ocasional.
Asseguramo-nos de um mundo virado ao contrário, porque nos reviramos, quando com olhos tortos nos fisgamos a todos, num rodopio esquizofrénico, com algas marinhas enroladas aos nossos corpos. Trazem a força de um dos elementos, que no mar se exilou por quanta loucura dali se apossar.
Exercitámos os músculos do corpo, para nos presentearmos esqueléticos na forma, mas exacerbados nos movimentos que damos ao fogo que trazemos. Não sabemos ainda, sobre o universo alquímico dos corpos ser a união sagrada da força de todos os outros elementos.
Absorvemos da atmosfera um sem número de iguarias, prontas para nos encherem os poros abertos da pele, quando por força de um elemento terreno, nos masturbamos em orgias funcionais e até as intelectuais.Esquecemos de nos masturbar de forma eloquente, na verticalidade, com que se apresenta a humildade, e nesse universo, o AMOR.
A fome de se “Ser” dos tempos modernos é uma fome estranha, mas sem se saber onde comprar a sua própria passagem para o outro lado, a margem dos enganos, mas, sedenta de humanismo.
Ele ali está, pronto para ser consumido, pois sabe muito bem de um fragmento, que cresce a olhos vistos, por todos os cantos da terra. Mas, como já vem lá dos tempos em que o homem descobriu o fogo, sem saber que já existia há muito dentro dele, agora quer transformar o seu próprio fogo num quinto elemento terreno.
Mais um ledo engano, o seu, porque por muito dissecar o ar com o seu bafo quente, ainda não teve tempo para ver, que mesmo esse, já constitui um todo no seu corpo.
A metamorfose, que ele não vê, porque o tempo dos tempos mortos é o paradigma que ele já construiu.

Dolores Marques 
(ÔNIX 07/12/15)