segunda-feira, 29 de abril de 2013

O dia em que a idade se encolheu


é a poesia
a única vontade
de me deitar
de costas
e olhar
para cima
como se ali
estivesse
a última de todas
as coisas simples

o olhar fecha-se
no exato momento
em que o sol
se esconde
nos meus olhos

calou-se para sempre
o corpo deitado
agora de bruços

a chuva cai
por entre os dedos
escorrega o terço
conta a conta
tal um conta-gotas
como se fosse
o último dia
da vida
do rosário

o dia em que
a idade
se encolheu
na terra ainda
húmida e fresca
para mais uma tela
a pintar


Dolores Marques Abril 2013

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Fim


Secaram as fontes
Morreram as flores
E já nem os lameiros
Têm o verde de outrora
Não há borboletas
Na maciez das pétalas
Que minhas mãos cuidaram
Não há nada que me faça
Acreditar que ainda 
Há vida em nós

Já nem cai a neve
No inverno
Nem se dá o milagre
Do sol 
Já o verão nem é verão
Até a primavera 
Se encolhe no corpo 
Do outono

Só um nada ficou
Resquícios do que 
Nos ocupou
Enquanto ilusão
Que em nós ficou

Não há vida em nós
E sei-o…
Porque também sei
Que os jardins voltaram a florir
E nós não vimos as flores
Nem sentimos os odores
Tal como não enxergámos
Os tons de azul no céu
O rosa acetinado das manhãs
O branco espalmado do lençóis
Onde nossos olhos choraram 

Sabes que o vermelho vivo
Cobre já as encostas 
E há brisas a ensaiar outros bailados
Nas pétalas das novas flores?

Não há vida em nós
E sei-o porque sei também
Que a chuva que caiu
Na última noite
Amoleceu a terra e deixou
Marcas profundas de outra noite
Em que o vento soprou
E nas janelas, até tatuou
Marcas de uma lágrima
Que não viajou 
E se lamentou
Pela perda que em nós ficou

Não há vida em nós
Mas se quiseres, até podemos
Esperar que a próxima estação
Nos dê alguma cor
Ou algo que nos faça
 Calar a dor 
De não termos vida 
Para viver outra vida em nós

Foto: Spencer TunicK

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Era o fim


Era o fim de tudo
- de tudo o que não fosse tulipas brancas
Era quando floresciam e se deixavam enamorar pelo tempo
Era o fim de tudo
- de tudo menos das tulipas brancas

Dizia-se que eram tempos de mudança e eu acreditei
tal como acredito ainda no branco dos teus olhos.
Cabia neles como quem cabe nos intervalos do vento

E tu…
Bem... tu não te fazias ouvir como no tempo em que os jardins floriam

Os lírios roxos já se foram
Era o tempo deles…de se calarem no seu tempo

Era o fim de tudo, de tudo o que não fosse tulipas brancas

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Será que a poesia tem alma?


Jamais a alma sente
O que o corpo desmente
Enquanto pedinte na sua incursão
Pelas avenidas novas
Jamais os rios sussurram
Enquanto as correntes estagnadas
Aguardam pela ressurreição das águas

Serão elas a única esperança
Para quem vive, e só
Para desenhar com palavras
As sombras que escondem um rosto
Ainda inocente

Para crescer basta ousar Ser
Mas para Ser é preciso ousar saber
Que o mundo é mundo
Só porque existe o céu
E ali, nascem e morrem as estrelas
Só porque o sol é o astro rei
E ali, escondem-se todas as pedras preciosas
Só porque existe a vida
E com ela a verdade nua e crua
De quem vive, cresce e morre até ao juízo final

Mas à noite acontece a lua
Para encomendar os sonhos nefastos
Daqueles que andam nus
A reescrever versos
Como pano de fundo
Da noite dos poetas vivos
E também dos poetas mortos

Mas de dia acontecem as primaveras
Para remendar os pesadelos
De quem ainda não vive no presente
Traçando em versos do passado
O berço da sua realidade

(Aguarda ainda para crescer na vontade
De querer ousar Ser de verdade?)

Que futuro incerto brilha agora
Nos seus olhos!
Sim, incerto por ser a sua verdade
Esmagada contra a corrente
Que os prende ao passado
E não os deixa viver o presente

Jamais as palavras serão correntes
Enquanto nos rios morrerem poemas
Criados com cruzes ao peito
E sinais da cruz tortos
Arrematados da direita para a esquerda
Testa com testa
Boca com boca
Ombro com ombro
Salpicados com água benta
Já estagnada nas pias batismais

Jamais será a poesia
A fonte de água cristalina
Enquanto nos banquetes
Se saciam os poetas
De fel, como se fosse o mel

Sabe-se que o mel adoça a boca
E escorre por todas as entranhas
Onde a voz se amacia
Tal como os seixos dos rios

Sabe-se que a órbita de um corpo celeste
Entra em ação quando
No seu corpo palpita o coração

Pobre coração que sente
E não se desmente
Pobre alma que escurece
E não se abastece da maior noite estrelar
Pobre poeta que escreve
E não se subscreve em sentimento

Aquele que se juntou às mais altas esferas
É passado, presente, e futuro
Lá, sim onde se dá o renascimento da poesia

- Será que a poesia tem alma?
Pergunta-me o poema

Jamais será o poeta, o astro rei da poesia
Enquanto não ressuscitar dos mortos
E sair dos escombros onde amontoou
Palavras, e mais palavras
Despidas de sentimento

- Jamais, jamais, jamais…a rima perfeita
Para início de um poema sem rimas
Mas ritmado no centro
Onde nasce o sentimento

Bate agora com a mão no peito
- Amem, amém, amém,
E no centro do seu corpo ouvem-se rumores
Versos que gemem por mais água benta
Gemem, gemem, gemem
Querem sair e rodopiar
Mas o corpo saiu de órbita
E nada o fará voltar
A ser céu
E lua
E estrelas
E até fonte de água cristalina
A correr montanhas
E a saciar os rios de novas correntes

E diz ele que é poesia
E diz ele que é poeta
E diz ele que fala
Quando o que sente o cala
E o leva a sonhar
Com as sombras ainda caladas
E sufocadas no seu olhar

Enquanto crescem as flores
Ele abandona os andores
Enquanto cantam os pássaros
Ele abdica de voar no céu
Enquanto crescem as árvores
Ele despe-se nas margens do rio
Enquanto jorram as fontes
Ele bebe do que julga ser o supremo
Esse incitador que lhe diz
Que é o eleito
Pela seleção da ordem natural
Escolhido para correr mundo

Mas e a poesia? Essa fica enjeitada
Ou mesmo calibrada nuns quantos punhados
De pepitas de ouro
Quando cantada, ou simplesmente
Arreada no solo fértil
Onde o poeta semeou a sua vontade

Jamais será o verso
Estrela cadente no seu cio
Por ser fêmea adultera
E poeta inculta
Nas avenidas novas
E até nas velhas
Onde estancou agora os seus passos
Para ver só, até onde irá
Quando já nada tiver para sossegar
O corpo e elevar a alma

(Dolores Marques – Ônix; Eventos 2013)

terça-feira, 2 de abril de 2013

Histórias sem passado e nem presente


Contei todos os quadrados e ultimei o meu desejo de ser a figura mais carismática de todas. Ajoelhei e orei a todos os santos, menos àquele que me disse um dia que seria só mais uma peça jogada nas masmorras onde todos dormem, enquanto não chega o dia do último sacramento.
Avisei-os a todos, mas... não me quiseram ouvir. Fizeram ouvidos moucos e retrocederam ao sítio onde tinham deixado os olhos. Ficaram assim sem conseguir enxergar as marcas dos seus pés de chumbo e, curvaram-se então todos para a mais bela oração de todos os tempos.
Era chegada a hora de se redimirem. Deitaram-se todos. Colocaram as cabeças, cada uma em sua quadrícula, para ser posta à prova a sua inteligência. Emocionaram-se todos aqueles que não cabiam nos quadrados e foram feitas as contas elevadas ao cubo para satisfazerem a sua vontade de se materializarem ali mesmo.
Da diferença resultou a soma. O equilíbrio forçado foi aceite por todos. Ficaram só histórias sem passado e nem presente. Renasceram para fazerem uma nova história e aí… começa tudo de novo!
Até quando, até quando para os preparativos de uma nova história? Mas agora sim, com princípio, meio e fim, em todas as figuras geométricas.

(Dolores Marques; Dakini - Eventos 2013)