sexta-feira, 29 de abril de 2011

Mulher

(Escultura: Ricardo Kersting)


Arranho os céus, sangrentos
E deponho as armas num gesto que me é dado sem graça
Sem nenhuma graça caída do alto do meu sonho

Vivi em tempos remotos
A dor do amor
A descrença
A miséria dos afectos
Proscritos na face nua do abismo
Esse ermo que m’engole toda
E eu toda lhe sou digna
E fidedigna consorte na morte devida

Afincadamente digo que sou
Mas não sei quando poderei voltar a ser
Nem sei se me vejo a denegrir um templo
Que me baptizou em menina
E me condenou, mulher solta nos caminhos

Trago no corpo a temperança
Que me guia por mundos indefinidos
Deram-me o justo valor do meu sonho
Do tempo em que me vestia de negro por fora
E me redescobria às cores
Enquanto fado cantado pelas ruas
Do lado de dentro do meu corpo

Consumida por todos quantos tinham a fome
A roer-lhes os ossos
Corrompida pelos que se vestem de manhã
E se despem à noite
Difusa por não saber ser só uma
Em todos os cantos escuros onde me deito
Emotiva por me encontrar nua no teu corpo
E desajeitada, calada, inerte, e cansada
Sou eu, aquela que viste na tua rua

Sopro






(desenho de Antonio Moura)




Se no teu corpo eu pudesse
Reescrever um verso solto
Retiraria dele todas as letras
Que me faltam
Para me proclamar nas alturas
Onde descanso o pensamento

Viveria no cume mais alto da serra
Onde o céu se esconde
E seria escala musical copulando
Com as subidas vertiginosas
Da tua boca nos meus seios

Passeiam-se os meus dedos
Nos pontos todos que te conheço
Almejando nos intervalos
Duma escala aberta
Uma só nota
Para que no final do solfejo
Eu seja o sopro do teu beijo

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Viagem





Permissivamente...

ausente das figurações abstractas que me cercam e me tentam imobilizar num chão de pedra.




Cansada mas já distante dos habituais acordes onde o pensamento faz mossa.



Desobstruir canais permissivos, a forma mais habitual de seguir viagem, sem me despedir.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Espaços



(foto: DM)

Já não me quero
em espaços fechados
onde os muros são frios
e os meus olhos
fundos inexistentes
onde o meu corpo descansa

Há a livre vontade de ir
e não voltar
a ser terra á vista
nos mares
onde a saudade se colhe
na linha do horizonte
e a tristeza se reúne
nos céus

Há estios desgovernados
e colheitas tardias
nos meus braços

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Nada

(imagem google)



*
Não vejo nos olhos do mundo
A dor
Nem a cor
Nem os movimentos
No além
Onde vive o amor

Não sinto nada
E nada é somente
O nada
Para quem não quer ser
Mais do que vida
E viver

Tenho-te
Mas não sei onde te guardar
Se nas memórias de outrora
Se nas viagens
Onde o meu corpo
Se demora

Não ouço nos picos entrelaçados
Das serras
Os ventos de Domingo
Não tenho agora
A morte
Nem a vida

Nem o não

Nem o sim
Que me fez ser alguém
Quando ainda nada sabia de mim

*

terça-feira, 19 de abril de 2011

Força

- Há consciência do que se obtém de um verdadeiro combate, quando a força se vende por nada?

- Não tentes decifrar o que já o foi, ainda antes da verdadeira força se revelar. Os combates existem para que a força seja um elo de ligação entre o bem e o mal. Nem sempre os desaparecidos em combate, são os mais fracos. Há uma força que não se vê, mas que está lá, esperando o momento certo.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Corpo

Escrever um corpo e traduzir em imagens, as formas anteriores do movimento que o formou, é entrar nesse mundo e desnudar-lhe a força, ao cair num sonho e ficar lá!
*
(Escultura - Ricardo Kersting)

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Sombra II


Se tivesse que te guardar nas minhas memórias, elas seriam um espaço sem fundo, onde se guardam todas as vontades de não se traírem os gestos nem os bons costumes. Se soubesse que te esconderias debaixo de um espaço inédito, onde se misturam as palavras que compõem um mostruário antigo de todas as leis em vigor, teria feito das nossas noites a própria Lei em acção. Deixarias de ser "plágio" da tua própria sombra...


Final do caminho...! Onde vais agora, sombra que te esmaga contra os muros negros, onde guardas todos os sonhos que te falta escrever?

Pontos de passagem


Sem rumo, perante uma única certeza, que no final, a vida lhe mostrará como garantia, de que nada será hoje, como foi ontem e que sem ela nada o fará ser gente. Ouve-se no fundo da rua um grito - a plena satisfação, de se ver espelhado nas luzes dos candeeiros. Elas reflectem a solidão da noite e nos seus ombros, descansam agora os sonhos que tinham ficado à espera de serem vividos nos fundos de um olhar baço. A mulher é um pano de fundo, onde os seus dedos irão delinear os traços da sua silhueta, e há um desejo a crescer fomentando uma nova ordem, chegando a atingir os limites do irrazoável. O corpo dela, é uma forma entre muitas as que conheceu enquanto homem emparedado nas ruas, mas as suas linhas, são mais do que pontas entre muitas, que lhe dão a certeza, de que a vida, espera por enquanto, entre as quatro paredes do seu quarto. É lá que se abastece, para que as duas forças sejam uma a desafiar a noite. A mulher tem uma verdade escondida, segredos de muitas noites e muitos dias, em que a sua teimosia se fez verdade nas esperas que lhe indicavam que ele viria em corpo e se deixaria ficar no seu. As noites que os têm, já não são as mesmas noites que a esperavam sempre ao fim do dia, e ele tem nas ruas por onde passa um sonho ainda trancado à espera para decifrar as cores de um olhar feliz.

*

Os seus passos são lentos, e os dela, afiguram-se a imagens de um filme a rodar, sempre a rodar em função de uma vida feita de cansaços. As imagens vão passando, em câmara lenta, e vêm-se os sonhos a cores e a preto e branco, os sorrisos numa face espraiando o medo, as curvaturas dos braços, o balançar do corpo, e um olhar baço a reconstituir as cenas e lugares, por onde andou. As mãos dele seguram-na para lhe avivar todos os pontos de passagem. A noite fecha-se para dar abertura ao dia. A espera é agora uma linha esticada por dentro de uma rua deserta.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Infinito


(Escultura: Ricardo Kersting)

*

Consentir num ponto

E terminar em linha recta

Sem pontos

Contestando a força

Num único esboço

Em movimentos constantes

E acalmar as gentes

As gentes que abandonam os lugares

Onde se desenham os traços

De uma figura abstracta

*

Avançar em passos largos

E deixar no caminho

As coordenadas

A atingir um ponto finito

Simetrias

Esquadrias

Correlações

Versando o infinito

E sentir

Simplesmente sentir

A força dos braços

O erguer das pernas

O desbotar da pele

O arregalar dos olhos

O abandono do corpo na lama

O coalhar das gotas de suor

A repartirem-se

Por todos os carreiros estreitos

Onde se dobram os corpos todos

E outras parelhas

A escalar as montanhas

A sonegar os rios

A abandonar os mares

E a consentir num ponto

*

Esse ponto minúsculo

Oculto

Sôfrego

Atento às mudanças

Do único traço

Um único ponto

No infinito

Caos

(Imagem Google)

*

Sair rumo ao tempo em que me deixava simplesmente ficar na desorganização de um espaço fechado.

*


Ficar lá, até que um novo movimento se mostre a tempo de não cair na desordem do caos.

*

Manter-me de pé até ao cair da noite e sair a tempo de não me misturar na ordem imposta pelo pensamento invertido.

*

- esse ponto em cruz que não sabe onde mora o Deus que o fez Homem, e onde reside o homem que o fez Deus.

*

quarta-feira, 6 de abril de 2011

...onde o ser se fez vida



Seria preciso muito mais do que uma soma de muitas noites, para que juntos pudessem, dizer-se. Por isso, se as noites se mantiverem nos seus olhos, elas serão uma única força a brilhar no escuro. Ele será uma movimentação bem ao fundo daquela rua, e ela a força imaginária da sua vontade de ir mais além. A vida que o tem, é agora uma só, em busca de algo que o faça acontecer para lá de todos os movimentos que ele já conhece. Precisa de muito mais do que uma só noite e uma só rua. Vai e vem consoante o brilho fosco que alumia a noite, e a mulher não sabe onde encontrar-se; se no fundo dos seus olhos, se nas funduras de um amor ausente, ou nas inconstâncias de uma vida presente, mas distante nas margens de um rio qualquer.

*

Caminha agora com passos mais firmes, para que o além lhe mostre mais verdade, mais vontade de ser alguém. Há homens que se sentam à espera que o céu lhes devolva a vontade de viver, mas este homem, é uma força viva a caminhar em frente, direccionando o olhar para outros movimentos que lhe mostrem que há fundos onde poderá esboçar todas as suas vontades de ser gente, entre todas as que ficaram no caminho. Este é agora um caminho onde a liberdade tem um preço e essa ninguém lha poderá negar, porque na casa onde nasceu, há um fundo interminável, onde o ser se fez vida e a vida se faz nascer de novo.

Fome


Essa fome, irá deixar-te um dia de boca aberta à espera de algo que estabeleça uma ligação directa às partes baixas.


…Há baixios assim a morrer de fome