quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sementes de Deus

Estava ali 
como quem
não quer nada
mas sentada  
na pedra
da eira
a mesma
onde crivara
o milho
depois dos feijões
e soprara os grãos
em direcção ao céu

Estava ali
a seguir
às leiras cavadas
a torcer a roupa
depois dos esfregões
dos lençóis
no tanque
a beber da fonte
que brota ainda
água fresca
no Verão

O mesmo Verão
em que ao serão
desprendia o carrapito
e soltava os cabelos
tão brancos
como a farinha
com que cozia o pão

E eu ali estava
agora deitada 
na mesma pedra 
da eira
e lembrava
o tempo...o tempo
da lareira acesa
quando as mãos dela
passavam rentes
à fogueira
e enchiam
panelas de ferro
com as gotas
de um suor frio
e o escorrer
de uma lágrima quente
enquanto o estrugido
saltava na sertã
para a ceia

E eu continuava ali
agora sentada
na mesma pedra
onde ela massou
o linho o espadanou
com uma espadana
que guardo
sem nenhum rasgo
de pudor
ou rancor
pelas flores de linho
arrancadas à força
pelas minhas mãos
enquanto criança
quando brincava
com as ervas 
e com os molhos
atados pelas mãos dela

(Tão bela e tão certa
estava de me entregar
agora à solidão da eira
sem os pés no chão)

E lembro
e relembro
os olhos dela
cansados
e sujos de terra
as mãos…as mãos
calejadas da enxada
e a aliança... a aliança
a brilhar ainda 
na mão esquerda dela

E eu continuava ali
agora de pé
a olhar o céu
 e a escrever nele
um poema
e também uma prosa
sentida por ela
e por todas as mulheres
da minha terra
que sem dono
nem trono
se deitaram na terra
e fizeram dela
o maior parto 
já visto do céu

E ela lia e relia
lá  do alto
todas as letras sentidas
por ela e por todos
os que deixaram a terra
arada, regada e semeada
de todas as sementeiras
que Deus nos deu

DM/ÔNIX2015







terça-feira, 28 de abril de 2015

Fim

O fim é quase
o princípio de algo
que se assemelha
aos movimentos 
migratórios 
de um corpo celeste
para se encontrar
num lugar 
onde nada existe

Dos corpos deitados
nas sombras esqueléticas
surge o início
a contrariar
o verdadeiro testemunho
do corpo travestido
mas não assumido
no seu único sentido


Dakini (Nada é Nada) 2014

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Elementos

Conheço o vento e a força
dos elementos
como quem se faz ao mar
ao encontro das marés

Descansam mares nos meus olhos
e rios no meu corpo

Seguro nas palmas das mãos
um sopro de serra, como um punhado 
de aragem miudinha
e nos pés, o fogo do último astro

Tenho ainda a Terra à vista
para o que der e vier
ou para o que quiser ser em mim

Dolores Marques in “Universus Alquímicos”

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Trago-te um desejo



Sou do povo sem mundo
do mundo sem povo
sou dos rios sem fundo
e vou ao fundo do mar

Trago-te um desejo
que te fará rasgar
o último céu
que guardas no teu olhar

Há timbres no infinito
e olhares carimbados
no olhos dos homens
e há bocas de fogo
por todos os horizontes
acabados de chegar

Sou fome e sede
e corpo estendido
aos pés do teu altar

Beijo-te os pés
que sangram vontades
de caminhar

Caminha agora
sem medos do que te faz calar

Grita! Rompe fronteiras
derruba pontes. Sê fortaleza
enfrenta todos
os que te querem calar

Vê-me à transparência
que sou onda que chega
para contigo dançar
neste ermo que somos
gente sem rumo
mas com aprumo
enfrentando tempestades
no alto mar

Ônix, pseudónimo de Dolores Marques