segunda-feira, 30 de junho de 2014

Apresentação de "Uivam os Lobos", por Filipe Campos Melo


Boa tarde,
Começo por agradecer o convite da Dolores, uma querida amiga que muito estimo, e dizer que é com muito gosto que aqui estou.

Cabe-me, nesta sequência, a apresentação do livro que hoje aqui nos trás
A primeira tarefa para quem pretende apresentar um livro é, evidentemente, ler o livro,
E assim fiz.

Acontece que, efectuada essa tarefa, surgiram-me vários questionamentos,

Esclareço, nenhum em relação às palavras que hoje vos são apresentadas, porque reconheço nesta escrita uma evidente qualidade, quer pela profundidade, quer pela sensibilidade, características que sempre encontro no verso da Dolores

Mas uma hesitação prolongada quanto à forma de iniciar esta apresentação
É que, após ler e reler, demoradamente, o livro, surgiram-me, quase instintivamente, inúmeras ideias e formas de o abordar 

E, de facto, talvez seja apropriado falar de abordagem quando nos dispomos, como foi o meu caso, a invadir as palavras de outra pessoa,
Embora, confesso, terminadas as leituras, a sensação que permaneceu é de que, afinal, foi o texto que me invadiu, numa pluralidade de inquietações.

Resolvi, então, deixar as palavras repousar durante uns dias,
Até que, num determinado momento, um eco se tornou predominante
“Não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes”.

Devo esclarecer que, definitivamente, não concordo.
Eu, pessoalmente, recuso-me é a voltar aos lugares onde fui infeliz.
Mas, na verdade, todos nós, inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, regressamos a esses lugares

Esta ideia – de não voltar ao lugar feliz – impôs-se, assim, como o ponto de partida para esta apresentação

E como um improviso absoluto é sempre absolutamente imprevisível, vão-me permitir que vá utilizando umas notas que alinhavei a este propósito

 “Não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes”.
Ora, regressar a um lugar, percorrer um caminho anteriormente percorrido, é sempre uma peregrinação.

Poderíamos talvez definir o conceito dizendo que uma peregrinação é o caminho que um devoto, voluntariamente, se predispõe a fazer rumo a um lugar que crê ser sagrado.

Assim, uma peregrinação é sempre uma romagem motivada numa crença.

Às vezes é prece, promessa ou profecia,
Outras vezes é autopunição e até via para a redenção de um “pecado-passado”.

Há, contudo, na sua variação conceitual, constante e inquestionavelmente, um traço de religiosidade que lhe é indissociável

E se assim é, para compreender uma peregrinação é absolutamente necessário, antes do mais, perceber porque determinada pessoa se predispôs a efectuá-la.
Mais ainda quando sabemos que peregrinar tem sempre imanente uma ideia de penosidade e de sofrimento.

Esta é a minha fundamental convicção – este livro é uma peregrinação.

É certo que, enquanto caminhar, uma peregrinação implica movimento,
Mas, todavia, peregrinar não exige necessariamente um deslocamento físico, nem o seu percurso é necessariamente medido em metros.

A invocação interior de uma memória é seguramente uma deslocação, mesmo sendo, como reconheço, uma deslocação inerte.
Este movimento (aparentemente imóvel) reconduz-se como pensamento
E o pensamento, pela sua inderrogável essência, estático nunca é.

Assim, quando é só pensamento, a peregrinação é um vaguear, um percorrer de lugares passados, nos quais, bem sabemos, a angústia sempre assoma e nos confronta.

Pela própria natureza do passado, que, por o ser, não volta mais.

Mas se o passado – precisamente por ser passado – não volta,
A ele – por passado ser - podemos nós regressar.
Assim se pode encontrar, nos primeiros versos do primeiro poema, a anunciação de um caminho

«Traziam campainhas
a chocalhar nos montes/
e nas mãos
línguas de fogo/
douta inspiração/
chegada cedo
de lugares primitivos»

Reitero, na minha interpretação, sempre discutível e subjectiva, “Uivam os lobos” é uma peregrinação.

Um regresso ao lugar passado, seguramente,
Ou como diz o verso, “aos lugares primitivos”.
Não deixa, aliás de ser curioso notar que, em latim, peregrinação diz-se “per agros”, ou seja “pelos campos”.

Por lugares e também por um “Eu”, interior e anterior, que se auto observa.

E, de facto, no livro, pelo verso, o sujeito poético retorna à terra inicial, no mesmo recriada, como bem se refere no prefácio deste livro,

Nesse prefácio, aliás excelente e que enriquece o livro de forma marcante, desenvolve-se a ideia
Dessa umbilical ligação do verso à terra, tantas vezes infértil,
Da indissociável raiz da palavra que se escreve num palco de memórias, onde se encena, citando o prefácio, “todo um imaginário que acompanhará (a autora) ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto medo quanto fascínio”.

Afirmação que, aliás, o verso confirma

«Estão as portadas fechadas
e eu tenho frio/
muito frio dos lugares inóspitos/
e medo/
muito medo dos açaimes brancos»

E quando assim é, voltando ao prefácio,
Nenhuma defesa será suficiente contra as raízes que se estendem da terra até ao Homem, fixando-se nas redes inefáveis e inevitáveis da sua memória”.

E é exactamente através dessa memória que se inicia esta peregrinação ao passado,
É um regresso a um determinado tempo,
Um tempo inicial, percorrendo os campos, voltando á fonte da inspiração, original

Mas não só,
O sujeito poético, observador, parte de um tempo presente e regressa aos lugares passados, através da memória, recriando esses lugares,
Mas também, num movimento ambivalente, projecta-se no futuro, mimeticamente antecipando o devir, poeticamente o pressagiando.

Diz o verso

«Tenho medo/
muito medo das colinas/
onde me esperam
outras histórias /
visionárias de novos mundos»



Como referi, para se perceber uma peregrinação é necessário compreender a motivação que a sustenta.
Dispus-me, assim, a tentar perceber qual a motivação deste livro, desta peregrinação.

Uma das pistas mais imediatas é a percepção da sistemática em que o livro se estrutura

O livro é composto por dois capítulos e, diria ainda, por um epílogo
Função que atribuiria ao último poema “Já me vi em dias de Sol, sem sol”, para mim, aliás, talvez o mais belo e profundo poema deste livro.
Todavia, se realmente o for, é um epílogo oculto, porque no livro não o encontramos com essa autonomia formal

O que encontramos é um primeiro capítulo denominado “Mimetismos”,
E um segundo capítulo intitulado “Cultos”.

Ora, poderíamos dizer que mimetismo é a semelhança que um determinado ser ou organismo adquire por influência do meio onde se insere,
É, no fundo, a adaptação a uma realidade através da sua replicação
Estamos, aqui, portanto, perante o conceito de evolução convergente
Na verdade, todos somos objecto de socialização, de forma sempre intensa, muitas vezes forçada
E, cada vez mais, vivemos numa sociedade mimética

Do ponto de vista das espécies,
Referência inevitável em face do título do livro,
O mimetismo é um processo de evolução da espécie, resultado da sua mútua interação, que conduz a uma harmonização ou padronização de comportamentos

Neste livro, o sujeito poético figurado é um lobo, melhor uma loba, que
Tendo deixado a alcateia, caminha agora solitária,
Num percurso que procura a compreensão do mundo onde se insere,
Mas que é simultaneamente um percurso de auto-compreensão

Este primeiro capitulo do livro, é o regresso ao passado, á terra,
E, assim, aqui vamos encontrar o sonho, às vezes pueril, a crença, o amor (o conceito primeiro, o amor original), mas também a desilusão, a descrença, o desamor que logo lhes sucede

E, assim sendo, existe também, imersa ao verso, uma ideia de evolução divergente, na medida em que percebendo a sua mimética aculturação, num olhar ao espelho, o sujeito poético rebate-a, questiona-a, rebela-se

Na verdade, há aqui uma ideia de destino, a ideia de uma predestinada convergência com um mundo que não era o pretendido, mas que é o mundo efectivamente existente – o presente

Assim diz o verso,

«Não sei porque te desenharam um rosto/
te deram formas ignorando o simples facto de te saberes uniforme/
contornando as margens das velhas correntes
que estagnaram no lodo que as fabricou»


Dizem que os lugares se alteram com a passagem do tempo
Mas muitas vezes o passar do tempo altera ainda mais a pessoa que os observa
Talvez os lugares nunca sejam exactamente iguais,
Mas certamente diferente é o sujeito quando a eles regressa

Assim, este movimento de regresso nunca se chega a desprender completamente do presente que o observa, e, por essa razão, sente-se no verso uma profunda nostalgia, às vezes saudade, às vezes conformação, outras vezes até crítica

Como se escuta no verso

«Dá-me da madrugada
o que é a tua voz/
e diz-me dum sítio/
dum lugar incerto/
mas dum tempo certo
onde me esconder»


Porque as coisas nunca são como as imaginamos, nem sequer como as vivemos, há uma marcante nostalgia neste capítulo
Até porque, afinal, esta peregrinação é uma auto-peregrinação

O segundo capítulo denomina-se “Cultos”
Um culto processa-se por um acto solene, por uma liturgia
Um culto é, assim, um caminho solene para a compreensão,
Quando se perceciona o objecto do culto,
Compreende-se também a identidade e a motivação do devoto.

Neste sentido também neste capítulo encontramos um caminho de auto-compreensão
Mas já não no tempo passado,
Agora é um estar, um passo presente que, simultaneamente, antecipa o futuro

E, assim sendo, necessariamente um espaço de esperas, como se diz no primeiro poema desta parte

«Mundo submerso
por duas lágrimas
a molharem-me os pés
ainda nus sobre a terra/
enquanto a chama corrente
aguarda pelas variações/
num tempo de espera»


Mas é também um espaço de angústia, às vezes nostalgia, outras quase desespero

«Aconteceu-me um tempo
que me arrasta
lá para os lados
onde me esperam
todos os moinhos de vento»

Cultos, é assim, um auto reencontro, entre a percepção de um passado, tanto aculturado, quanto doloroso,
E o questionamento de um presente-futuro

Deste movimento emerge a poesia, num olhar que se define métrico poema

«Tristes são todos os olhares
que engoliram o mundo /
sem saberem
onde enterrar os corpos/
Foices a calcular a métrica
que os fará alcançar /
os caules
as folhas
e
as raízes secas
 junto ao chão»


Permitam-me apenas mais um sublinhado,

Existe um traço essencial que percorre todo o livro,
Que é simultaneamente mimetismo e culto,

Um amor, uma emoção profundamente marcante, que procede da origem e que, ainda que agora ausente, se mantém demasiadamente presente

Como por exemplo se sente neste trecho:
«Esqueci-me de ti
quando o vento se aproximou /
falando-me nas horas vagas
dum mar imenso de saudade»


Disse que para se perceber uma peregrinação seria necessário compreender a motivação que a sustenta.

Retomo, agora e como ultima referência, o título do livro: “Uivam os lobos”.
Um uivo é um grito entristecido, um eco de um passado que se antevê igual

E, se assim é, pergunto-me: Mas, afinal, porque uivam os lobos?

Escutemos, uma última vez, o verso

«Uivam os lobos
por falta de nortadas quentes/
caminhantes na certeza
de uma única noite/
que será eterna»


Filipe Campos Melo