sexta-feira, 29 de abril de 2011

Mulher

(Escultura: Ricardo Kersting)


Arranho os céus, sangrentos
E deponho as armas num gesto que me é dado sem graça
Sem nenhuma graça caída do alto do meu sonho

Vivi em tempos remotos
A dor do amor
A descrença
A miséria dos afectos
Proscritos na face nua do abismo
Esse ermo que m’engole toda
E eu toda lhe sou digna
E fidedigna consorte na morte devida

Afincadamente digo que sou
Mas não sei quando poderei voltar a ser
Nem sei se me vejo a denegrir um templo
Que me baptizou em menina
E me condenou, mulher solta nos caminhos

Trago no corpo a temperança
Que me guia por mundos indefinidos
Deram-me o justo valor do meu sonho
Do tempo em que me vestia de negro por fora
E me redescobria às cores
Enquanto fado cantado pelas ruas
Do lado de dentro do meu corpo

Consumida por todos quantos tinham a fome
A roer-lhes os ossos
Corrompida pelos que se vestem de manhã
E se despem à noite
Difusa por não saber ser só uma
Em todos os cantos escuros onde me deito
Emotiva por me encontrar nua no teu corpo
E desajeitada, calada, inerte, e cansada
Sou eu, aquela que viste na tua rua

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