sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Sabes...



Sabes, era o tempo dos frutos e do mel
Era o tempo das cerejas e dos pássaros a bicarem nas minhas mãos
Era o tempo de subir às cerejeiras e me vestir daquele vermelho vivo, tão vivo como o tempo dos madrigais...sabes?
Sabes como é sentir-se princesa com brincos de cereja ocasionais?
Bailavam os pingentes vermelhos pendurados nas orelhas a desafiarem o escuro dos olhos
Sabes…era assim um tempo de folhos e rendas, e tranças com laços no cabelo
Eu, como sabes sorria para os montes porque era primavera
Era o tempo das urzes e das águas a correrem nas levadas
Era também o tempo,do suco meio agreste das amoras a escoar-se pelos meus dedos
Este era apesar de tudo um tempo sem açucenas medievais
Era o tempo das pútegas e dos doces intemporais
Sabes que era também o tempo dos ninhos nos beirais
Do cantar do cuco nos pinhais
E dos corvos nos matagais ?
Estes traziam a morte nas asas e os choros nos seus arraigados ais
Sabes, era também o tempo do verde dos lameiros
Das águas a correr pelos ribeiros 
E também por cima de mim 
Ai de mim a sorrir para o sino da capela, quando por sorte lhe puxava a argola agrilhoada 
Depois escapulia-me e deitava-me na erva macia a olhar os dias azuis, e os verdes, e os rosas e depois os amarelos e os lilases
Os vermelhos eram os que mais gostava. Partilhava-os com uns ténis novos de marca...diziam serem de marca...não sei
Eram todos os dias dos meus olhos
Eram os que me permitiam ser céu e serra, rio e vento, chuva e maresia, sol e lua, noite e dia, e tudo o que um só corpo astral vivenciou para mim
Era eu, naquele nevoeiro miudinho que descia da serra, sem correntes nem visões futuristas de qualquer apogeu
Era um dia sem céu
Era o tempo dos olhos negros…vivos tão vivos como as olhos escondidos nas folhas das oliveiras
Mas sabes também quem eu era
Tal como sei quem tu eras
Vida cantada nas eras das pedras de xisto
Vida desvairada nos penedos onde o vento escreveu num só segundo os nomes todos que já eram seus
Tu e eu, ou Eu e tu, elevados ao tempo de um céu maior nos nossos olhos
E agora, de novo as amoras nos silvados para pintarem os meus lábios
E as cerejas, brincos esbeltos de rubi a brilharem debaixo dos meus cabelos
E foi sempre assim apesar do vermelho dos ténis que calçaram os meus pés

Dolores Marques

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