quinta-feira, 30 de maio de 2013

Ad Eternum

O que pensarias
Se me visses 
Ir embora
Sem um toque
Sem um gesto
Sem um aceno
Com a mão direita
Para logo depois
A da esquerda
Te tocar ao de leve
Os lábios 
Ainda quentes
Dos beijos 
Que demos
E dos soluços 
Que engolimos
Um do outro?

Diz-me porque
Mastigas o ar
Que respiro
E porque te deixas
Ao abandono
No mesmo chão
Onde apoio os pés
E te denuncias
No mesmo céu
Onde descanso
O corpo?

Disse-te tantas vezes
Que não existe 
Qualquer ponto
Em qualquer espaço
Que não esteja ocupado
Com um sentimento 
Que ainda não se entregou
Aos ventos do inverno
E nem às brisas
De uma primavera
Que agora chegou


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Porque choras?




Porque choras
Se o choro 
E um momento doce 
Nas lágrimas 
Que lavam a pele
Dos mendigos?

Esse lamento que calam
E com que lavam a alma
É simplesmente 
Um rio que dorme
Até que a corrente
De lágrimas
Os acorde em soluços

Mas tu…
Tu que choras!
Porque choras
Se o choro é a tristeza
A desafiar a alegria
E esta por sua vez
É euforia
Em demasia?

Esse olhar teu
Que se quer no meu
É só um destino vadio
A consequência
De um choro
Que se perdeu
E se esqueceu
De todos os rostos marcados
Pelas correntes do teu rio

Sabes bem porque nada
Te doeu
Quando choravas
E ouvias o último grito
A encher o céu

 Eventos -2013

terça-feira, 21 de maio de 2013

Rezas





Pelo menos, ou pelo mais, pensando, serei uma peça a resvalar no tabuleiro gasto, onde os pensamentos se ajoelham para rezarem o terço. 

…há rezas mais que descorçoadas, quando se vêem reflectidas no brilho das contas negras de um rosário.

Dolores Marques; Dakini – Ilusorium 2011)

O tempo em que brincava


o tempo
esse tempo
em que brincava
à cabra-cega
e me escondia
na folhagem
de uma árvore
que no silêncio
me escutava
era um tempo
inédito
para mim

ai o tempo
esse tempo
em que brincava
e ninguém
sabia de mim

DM; Dakini, Eventos 2013

terça-feira, 14 de maio de 2013

Onde o cheiro se faz morte




A partitura serenou o espírito
De quem se encontrou com a verdade
Mas a mentira cobriu a verdade
Fez-lhe um filho sem idade

(As mentiras fazem-lhe agora tremer os olhos)

Ouviam-se sons vindos de um lugar secreto
Onde as bocas engoliam todas as notas soltas
Soltavam-se por todas as encostas nuas
Onde já nem as pedras choram
E nem os animais se tocam

A humanidade parece-se
Com uma maçã podre
Dentro de uma cesta de vime
Que faz da cesta de vime
Uma esteira onde o cheiro se faz morte
Como se a morte fosse
Só uma mão aberta
Para a fome

Têm os infelizes as letras todas
Para formarem novos nomes
Têm as pautas abertas e os saxofones prontos
Para soprarem para dentro deles
Como se fossem pães acabados de sair do forno

São todos eles, uma chusma no cangaço
Uma comandita a querer pisar o morro
Que desmiolado se vai definhando
E até se acabar
Chora a dor de não poder sair
E evaporar-se para outro lugar

Cantam às almas lá para os lados
Do sítio, onde morreram todos os lobos
Que, famintos desceram a encosta
A espumarem pela boca

Todos se encolheram até que chegasse
A primavera e lhes desse mais um pouco
De chão para cobrir
Tal como os bois cobrem as vacas
E os carneiros, as ovelhas
E os homens, as mulheres
E os galos, as galinhas

A cacarejar lá vão elas de asas ao vento
Até que a fome as leve como quem leva um coelho
Pelo cangote sem pelo

São os ventos e as brisas
E as flores que nasceram já
Em todas as árvores

São os filhos das partituras
Que pediram para nascer
Nos caminhos
Onde há bosta para pisar
Ou até para rasurar alguma
Obra de arte
Que irá nascer ainda
De verdade

Dolores Marques; Dakini "Eventos"- Maio 13

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Alquimias


Se as vistas
Que (a)visto daqui
Me trouxerem o teu sorriso
Mergulho nesse mar que vi
E sugo-te o mel que coalha
No teu corpo

És já um instante
Que percorro
Sedução e paixão
E a minha boca
Um sopro quente
Alquimia soletrada 
Pelo chão

E lá que m’encontras
Em constante agitação
Apartei-me do meu rio
E sou-te onda presa
Maremoto onde aprumo
A minha solidão

Sou nas brumas da memória
Um corpo só
E na alma…todos num
Sou nos tempos idos
Um vulcão que morreu na tua mão

Vê como sangra ainda
E corre por todos os rios
Ao encontro das vestes idas
Onde o sol reparte
A melhor parte do único verão

Dou-te a minha boca
Sê tu um único trago
E sacia a minha sede
Que morre aos poucos
Num descampado
Onde se juntam as estrelas
E s’arrumam outros sóis
Sem embarcação

(2009)