quarta-feira, 3 de abril de 2013

Será que a poesia tem alma?


Jamais a alma sente
O que o corpo desmente
Enquanto pedinte na sua incursão
Pelas avenidas novas
Jamais os rios sussurram
Enquanto as correntes estagnadas
Aguardam pela ressurreição das águas

Serão elas a única esperança
Para quem vive, e só
Para desenhar com palavras
As sombras que escondem um rosto
Ainda inocente

Para crescer basta ousar Ser
Mas para Ser é preciso ousar saber
Que o mundo é mundo
Só porque existe o céu
E ali, nascem e morrem as estrelas
Só porque o sol é o astro rei
E ali, escondem-se todas as pedras preciosas
Só porque existe a vida
E com ela a verdade nua e crua
De quem vive, cresce e morre até ao juízo final

Mas à noite acontece a lua
Para encomendar os sonhos nefastos
Daqueles que andam nus
A reescrever versos
Como pano de fundo
Da noite dos poetas vivos
E também dos poetas mortos

Mas de dia acontecem as primaveras
Para remendar os pesadelos
De quem ainda não vive no presente
Traçando em versos do passado
O berço da sua realidade

(Aguarda ainda para crescer na vontade
De querer ousar Ser de verdade?)

Que futuro incerto brilha agora
Nos seus olhos!
Sim, incerto por ser a sua verdade
Esmagada contra a corrente
Que os prende ao passado
E não os deixa viver o presente

Jamais as palavras serão correntes
Enquanto nos rios morrerem poemas
Criados com cruzes ao peito
E sinais da cruz tortos
Arrematados da direita para a esquerda
Testa com testa
Boca com boca
Ombro com ombro
Salpicados com água benta
Já estagnada nas pias batismais

Jamais será a poesia
A fonte de água cristalina
Enquanto nos banquetes
Se saciam os poetas
De fel, como se fosse o mel

Sabe-se que o mel adoça a boca
E escorre por todas as entranhas
Onde a voz se amacia
Tal como os seixos dos rios

Sabe-se que a órbita de um corpo celeste
Entra em ação quando
No seu corpo palpita o coração

Pobre coração que sente
E não se desmente
Pobre alma que escurece
E não se abastece da maior noite estrelar
Pobre poeta que escreve
E não se subscreve em sentimento

Aquele que se juntou às mais altas esferas
É passado, presente, e futuro
Lá, sim onde se dá o renascimento da poesia

- Será que a poesia tem alma?
Pergunta-me o poema

Jamais será o poeta, o astro rei da poesia
Enquanto não ressuscitar dos mortos
E sair dos escombros onde amontoou
Palavras, e mais palavras
Despidas de sentimento

- Jamais, jamais, jamais…a rima perfeita
Para início de um poema sem rimas
Mas ritmado no centro
Onde nasce o sentimento

Bate agora com a mão no peito
- Amem, amém, amém,
E no centro do seu corpo ouvem-se rumores
Versos que gemem por mais água benta
Gemem, gemem, gemem
Querem sair e rodopiar
Mas o corpo saiu de órbita
E nada o fará voltar
A ser céu
E lua
E estrelas
E até fonte de água cristalina
A correr montanhas
E a saciar os rios de novas correntes

E diz ele que é poesia
E diz ele que é poeta
E diz ele que fala
Quando o que sente o cala
E o leva a sonhar
Com as sombras ainda caladas
E sufocadas no seu olhar

Enquanto crescem as flores
Ele abandona os andores
Enquanto cantam os pássaros
Ele abdica de voar no céu
Enquanto crescem as árvores
Ele despe-se nas margens do rio
Enquanto jorram as fontes
Ele bebe do que julga ser o supremo
Esse incitador que lhe diz
Que é o eleito
Pela seleção da ordem natural
Escolhido para correr mundo

Mas e a poesia? Essa fica enjeitada
Ou mesmo calibrada nuns quantos punhados
De pepitas de ouro
Quando cantada, ou simplesmente
Arreada no solo fértil
Onde o poeta semeou a sua vontade

Jamais será o verso
Estrela cadente no seu cio
Por ser fêmea adultera
E poeta inculta
Nas avenidas novas
E até nas velhas
Onde estancou agora os seus passos
Para ver só, até onde irá
Quando já nada tiver para sossegar
O corpo e elevar a alma

(Dolores Marques – Ônix; Eventos 2013)

2 comentários:

Filipe Campos Melo disse...

Nada sei da ressurreição das águas
Nem das pedras preciosas perdidas entre céus

Nada sei das primaveras nascidas em verso
Nem das fontes cristalinas que saciam
os poetas

Nada sei da noite
Nem sequer do sossego prometido

E, contudo,
A terra move-se
O mundo escreve-se
Enquanto, entre caminhos,
te fazes verso


Muito profundo (tocante)
E muito belo

Um grande exemplo da tua qualidade

Bjo.

Clarisse Silva disse...

Olá Dolores,

O título/pergunta é uma boa pergunta. Dado o teor das palavras escritas, (estas o foram com a alma - é certeza), parece que nem sempre o poeta é possuidor do cerne que está por detrás daquilo que vem em forma de versos. Tantas e tantas palavras se escrevem, destituídas de fundamento interior, servindo interesses vaidosos, alimentando a efemeridade.

Grande poema.
Saudações,
Clarisse Silva