segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Fragmentos do Passado

Após escrever alguns poemas, os mesmos provocaram-me uma espécie de malquerer estranho, não pelo que me diziam, mas pelo que me faziam sentir como autora, sendo que, nunca me tinham chegado ao pensamento com penas de que fosse apelidada no futuro, de qualquer coisa a furar o pensamento de alguém. Foi então que pensei na forma de os dar a ler, sem me identificar. Talvez por pensar mesmo na tal coisinha que estaria prestes a acontecer - a edição de um livro.

Vivia-se um tempo de poesia. Respirava-se poesia. Cantava-se poesia. Víamos em cada poeta uma flor a desabrochar. Escrevíamos em duetos, às vezes, até em tercetos. Revezávamo-nos entre uma inspiração e outra. Perseguiam-se assim, tantas vezes, os sonhos abandonados, cansados de tanto abarcarem o maior número possível de versos caídos nos olhos uns dos outros. 
Lamentavelmente os sonhos fragmentaram-se, e a poesia nascida lá nos sonhos, transformou-os em fragmentos do passado.

Mas como ia dizendo, não pretendia tomar posse daquelas coisinhas que iam nascendo dia após dia, porque como referi, não os tinha idealizado muito menos pensado, quanto mais sonhado. Atribuí-los a alguém com uma imagem a defender, seria deitar por terra a amizade e relações poéticas que sem nenhuma ordem, lá iam crescendo.
Dakini, o nome que escolhi para dar a ler aqueles poemitas e que eu já começara a ter em alguma conta, por conta também da afeição tinham por eles. E foi assim, com ajuda de amigos Poetas, através da interacção, ajuda mútua, consentimento, acolhimento e reconhecimento da autora isenta da primeira (Eu), que Dakini começa a tomar forma de poeta e a ganhar-me em pontos. Mas, nem por sombras por escrever mais do que eu.

Sabe-se que a escrita é um acto isolado. Os poetas recolhem-se no seu mundo interior e vasculham tudo num silêncio que os acolhe em primeira mão. Mas, após esse isolamento, que fazer? Viver só para ele, o que sente, o que escreve, como se fosse único e omnipresente num mundo próprio? Não! Ele precisa interagir, comunicar, de se sentir entre outros. É este mundo reorganizado em lugares novos e modernos, conduzidos e orientados pelas novas TIC’S, que os fazem também chegar às Editoras. Estas novas editoras são nada mais do que um intermediário do autor, por causa daquelas burocracias todas que fazem sair um livro com direito a nome de autor e tudo. Estas editoras fazem também parte deste novo mundo organizado, mas este lamentavelmente, orientado para os cofres destas que nasceram para ajudar a concretizar os sonhos ou as ilusões de muitos poetas/escritores. Então, sobrevivem à custa de quem escreve, e, ingenuamente decide editar um livro. 

Sabe-se que editar um livro hoje em dia custa os olhos da cara, ou então de um pé de dança, junto às ancas dos que têm um grande jogo de cintura, obviamente, ou não. Para muitos, faz parte da concretização de um sonho, antigo ou moderno, tanto faz, como tanto fez. Porque o que é preciso é não deixar morrer o sonho. Para outros trata-se de um objectivo de vida como outro qualquer, por terem "encasquetado" naquilo.  Depois, há ainda os outros, que por via de escreverem uns poemitas, fruto de sua inspiração ou não, ou por via directa ou indirecta, ou até à custa de tanto quererem escrever e editar um livro gastam horas diárias em consultas intensas a sites e blogues com uma linguagem poética e inspiradora a sermões espiritualistas, e outros tão em voga agora nestes tempos modernos, a que dão o nome de “auto conhecimento”. E então, forçando a inspiração divina para que o Verso não se plagie a ele próprio, sim porque Deus nunca poderá ser plagiado, lá vão expulsando das entranhas tudo o que lhes bastará para calar um eco desmiolado que ainda vive de um sonho.

Mas, como ia dizendo, Dakini surge de um nada aparente, talvez para me alertar de outros mundos mais consentâneos com a minha verdade, ou a verdade, só das palavras. Em princípio, decidi deixá-la ficar no anonimato. Porém, foi em espanto que vi os mesmos poetas que me conheciam a elevarem aquele nome, que mais parecia um fantasma, sustentando-a naquele novo mundo. Depois, com a decisão de imprimir em livro “Uivam os Lobos”, escrito em 2010, tomei a liberdade de desvendar quem estava por detrás da tal figura já com muitos adeptos e até preferida de alguns poetas que considero muito bons, mas desconhecidos até no mundo das novas TIC’S.

Foram então estes Poetas que me incentivaram a editar um livro da dita cuja que dá pelo nome de Dakini. Tirei-lhe o véu, sim! Não me arrependo, porque andar de burca nunca foi meu objectivo,  nem tão pouco um sonho, graças a Deus. E depois, quem iria aceitar num nome daqueles, que diz ter nascido nas terras altas? 
Como justificar a falta de pensamento para alguns poemas, quando o pensar é antes dos poemas, a forma mais inequívoca de se fazer anunciar?

Mário de Andrade, Poeta Romancista, crítico de arte, musicólogo e ensaísta brasileiro, escreveu: “Escrevo sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita. Penso depois; não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi.”

Tudo isto é verdade, mas ao ler o prefácio fantástico no livro “Uivam os Lobos”, resta-me a dúvida se o que escrevi, foi em primeira mão sentido, ou pensado, ao ler a Sofia Gabro:

““Uivam os Lobos” assemelha-se a um palco de memórias. Nele se contam, e encontram, de um modo intensamente vívido, uma série de imagens remanescentes de um outro tempo, aqui presente sob a forma de um eco, retumbando por entre os versos que o firmam”.

Assim, a escrita é para mim, muitas vezes redescobrir, destapar as imagens e deixar que os ecos deixem de ser simples ecos, para se firmarem no tempo. 

Pensei quando li esta passagem no prefácio de Sofia Gabro:

Moção, a terra-origem de Dakini, desempenha, neste livro, um papel fulcral, servindo, não só de cenário e inspiração, como também de lugar de aprendizagem - já que foi aqui que a autora deu os seus primeiros passos e absorveu as suas primeiras estórias, iniciando a construção de todo um imaginário que a acompanhará ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto temor quanto fascínio. 

“A rua onde moro
é escura no pranto
ladainha surda
como um lobo de matilha”
(Do poema “Em transe”)

“Estão as portas fechadas
e eu tenho frio
muito frio dos lugares inóspitos
e medo
muito medo dos açaimes brancos

“Todavia, e apesar de “em redor das estrelas” o movimento ser circular e, deste modo, regrado e cíclico como a própria Natureza se espelha sobre os campos, a identidade, por vezes, esmorece; e os limites do corpo tornam-se uma miragem ou uma “mera desfocagem” deambulando por “atalhos remendados/e restos de eras disseminadas”. Nesta circunstância, o encontro “dum lugar incerto/mas dum tempo certo”, onde o reencontro exista, torna-se urgente, já que a tristeza avassala todo o mundo disseminando caos e solidão”

Pensei ainda mais quando ouvi Filipe Campos Melo na apresentação do livro em Lisboa, e que por sinal, não me surpreendeu, dada a natureza da sua sensibilidade poética, quer pelo que escreve em si, de si, quer pelo que escreve, em função do que lê, e que o conduz em análises profundas:

“Reitero, na minha interpretação, sempre discutível e subjectiva, “Uivam os lobos” é uma peregrinação.
Um regresso ao lugar passado, seguramente,
Ou como diz o verso, “aos lugares primitivos”.
Não deixa, aliás de ser curioso notar que, em latim, peregrinação diz-se “per agros”, ou seja “pelos campos”.

E se deixar arrastar pelo pensamento, vou até ás minhas memórias e encontro as palavras de Celeste Almeida, quando da apresentação que fez em Alenquer:

“Sem medo de assumir a vida e sem medo de se assumir a si própria, transforma o seu desejo criativo em escrita concreta. Ama e escreve o que sente. A poesia é parte do seu corpo. Escreve o tempo todo e  não apenas quando está diante do papel ou do computador! Esse é o momento final, em que as palavras saem dela e tomam forma exterior”.
Afirmação aliás já referida por Carmo Miranda Machado, quando do prefácio e da apresentação do meu segundo livro “Subtilezas da Alma” em 2009, e aqui reforçada por CA.

Lembrei agora de Fernando Pessoa nestes versos: “Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.”

E voltando atrás. Escrever poderá ser um acto isolado, mas nunca abafado nem encurralado. Nós somos muitos e muitos são em nós ao criarmos imagens, mesmo que só provenientes do sentir, ou só do pensar. Mas, colocarmos as pessoas perante a poesia, é levá-las a sentir, a pensar em muitos sentimentos, quer delas próprias que lêem, quer de quem lhe faz chegar a mensagem. 

Ainda Fernando Pessoa:
“Pensar é querer transmitir aos outros aquilo que se julga que se sente.
Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros. O que se sente não se pode comunicar.
O sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha a alma.
A lucidez só deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias ante-câmaras é proibido ser explícito.
Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que a outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que a outra pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica. Deus é toda a gente”

Como não posso deixar passar um último apontamento de uma grande amiga que me deixou umas notas sobre o livro em cima da mesa da cozinha. Deu-mas a filha, que as encontrou dias após a sua última viagem...ou não. Já se foi mas continua viva em mim.

"Para mim, o livro tem um tipo de poesia muito subjectivo, onde a Dolores anda sempre a tentar procurar o que a rodeia e as vivências. Desta vez, foi muito das suas raízes. Transcrevo-as de forma subtil, ou seja muito camufladas. Realmente aprecio mais prosa que poesia, tendo mais dificuldade na sua interpretação.
Mas, apoio-a, continue a escrever, a imaginação está lá e o livro tem o seu valor literário". Maria Teresa

E tudo isto para vos fazer chegar alguma forma de nascimento ou renascimento. Isto para quem acredita em Deus, mas não vê na sua fé uma forma de castigar desordenadamente quem cumpre objectivos, ou imprime em algumas folhas de um livro, alguns sonhos mesmo que fragmentados do que resta do passado.

Assim escreveu São Gonçalves sobre o livro numa das suas interpretações:

“Sabe-se através da biografia que Dakini,deixou a terra natal ainda em criança,e que apesar disso a visita muitas vezes, e de onde sempre renova a sua inspiração.
Sabe-se também que a memória é um rio onde correm todas as metáforas,todas,as alegorias.
Este livro prova mais uma vez ,que a preservação das nossas raízes,da nossa identidade ,da nossa memória pode ser preservada pela poesia e pela viagem ao lugar mítico da nossa existência.” São Gonçalves


Dolores Marques